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sábado, 22 de janeiro de 2011

A TRANSCRIAÇÃO DO ESPAÇO NO FILME LAVOURA ARCAICA


Paraguassu de Fátima Rocha


No filme de Luiz Fernando Carvalho, bem como no texto de Raduan Nassar, as configurações do espaço não se delineiam como pano de fundo, mas sim como pontos de significação e conteúdo, porque o espaço é interiorizado pela personagem em cuja mente misturam-se as emoções do presente e as reminiscências do passado. Ambos, Nassar e Carvalho, são mestres na criação de imagens que denotam a complexidade da mistura e fusão do devaneio com a lembrança (Bachelard, 1993, p. 44) que toma conta da mente de André quando rememora os acontecimentos ocorridos dentro da casa natal e cercanias.
Segundo Gaston Bachelard, “a casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio” (Bachelard, 1993, p. 26). A rememoração das rotinas da casa e dos espaços adjacentes torna-se um elemento chave para revelar a geografia interior do narrador-protagonista. Nesse processo de vasculhar o passado, André denuncia o fanatismo do pai, o chefe da casa que subjuga a todos em nome de tradições antigas e de crenças religiosas, traduzidas de acordo com a sua conveniência e que conduzem cada membro da família a um isolamento paradoxalmente centrado na união familiar. E essa relação paradoxal é revelada, tanto no romance de Nassar quanto no filme de Carvalho, com base nos princípios da ontologia do ser. Na medida em que André se apercebe que os valores apregoados pelo pai perdem o significado e seus ensinamentos tornam-se confusos, não se aplicando à realidade em que acredita, ele se rebela, conforme confidencia a seu irmão: “Pedro, meu irmão, eram inconsistentes os sermões do pai” (Nassar, 1989, p. 48).
No reencontro com o irmão, André revive seu passado, desnudando diversas regiões de sua intimidade e fazendo emergir lembranças que traduzem metaforicamente a relação do homem com seu espaço, seja ele interno, onde os sentimentos convivem harmônica ou desarmonicamente prontos a explodir à menor passagem de ar, ou ainda externo, o qual surge como coadjuvante desse processo, mas não menos responsável pelas reações advindas do ser que se vê em conflito com os elementos que o circundam, sejam eles de ordem material ou espiritual.
Ao tratar da questão do espaço e os elementos simbólicos que o compõem, os pensamentos de Antonin Artaud e Gaston Bachelard parecem soar em uníssono na compreensão da estilística adotada pelos autores do romance e do filme Lavoura Arcaica. Artaud em O teatro da crueldade (1993) e Bachelard em A poética do espaço (1993) comungam do mesmo pensamento ao vislumbrar a necessidade de confrontar o ser do homem com o ser do mundo, promovendo o que Bachelard convencionou chamar de dialética do exterior e do interior. Aí residem todas as manifestações que provêm do espaço íntimo do ser e que resultam da convivência com a dimensão externa à qual este é submetido. Segundo Artaud, a extensão e os objetos falam mobiliados de silêncio e mobilidade e as coisas da natureza exterior surgem como se fossem tentações (Artaud, 1993, p. 84).
A representação da intimidade está contida na relação de André com a natureza: ele se coloca como parte dela, ou ainda conforme declara Luiz Fernando Carvalho “André é quase um musgo, [...]. Eu sempre o imaginei como uma planta” (Carvalho, 2002, p. 33), e como tal vive à sombra de seus pensamentos. André mostra-se sempre um ser retraído e mesmo quando o momento é de descontração, afasta-se, recolhe-se em si mesmo, não participa efetivamente dos acontecimentos, mas são esses momentos que revelam seus pensamentos, seus desejos contidos, e conforme afirma Bachelard “fechado no ser, sempre é necessário sair dele” (Bachelard, 1993, p. 217). A festa no bosque é um exemplo da exteriorização dos sentimentos reprimidos de todas as personagens. André revela seu desejo inconfessável por Ana ao enterrar seus pés na terra, sugerindo a idéia da penetração e considerando-se os pés como símbolo sexual, conforme descrito por Chevalier e Gheerbrant (2007:694) em seu Dicionário de Símbolos, ela por sua vez, através de uma dança sensual, demonstra o seu fogo de vida, o impulso irracional para a vida, e desponta como tentação para André.
Dessa forma, os espaços selecionados por Luiz Fernando Carvalho surgem como moldura para a revelação dos estados da alma das personagens, e relacionam-se especificamente na representação de André, com as mudanças que ele sofre ao longo de sua existência. Na infância, a personagem transita por espaços abertos, onde predominam campos que se estendem além dos limites da visão, projetando a liberdade e a imaginação do menino. Na medida em que vai crescendo seus espaços vão se estreitando, refletindo seu isolamento e insatisfação com as atitudes do pai.
            Carvalho delineia ainda o processo de ambientação descrito por Osman Lins como “o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente” (Lins, 1976, p. 77), mesmo antes de iniciar as filmagens, buscando na reconstrução de um cenário ideal de fazenda desde a escolha do local, a recuperação da casa, a escolha do mobiliário até a convivência dos atores entre si, experimentando situações comuns àquele ambiente. Yurica Yamasaki, diretora de arte, afirma nos extras do filme, que a intenção era gerar “um fundo que criava um ‘clima’ [...] que dá uma densidade ao filme, que passa para o espectador um astral” (Lavoura Arcaica, 2002, Extras). Toda essa preparação contribui para que o público não se veja apenas diante de um plano cinematográfico delimitado pela câmara, mas sim, perante a totalidade da imagem simbólica ali representada.
O crítico de cinema Marcel Martin, ao analisar os símbolos, argumenta que esses se “acham investidos, além de sua significação direta, de um valor maior e mais profundo” (Martin, 2003, p. 101), classificando-os como símbolos plásticos, dramáticos e ideológicos. As lembranças, que André armazena em seu subconsciente e que revelam seu passado solitário, escondido, obrigando a personagem desde a infância a fixar-se em seu próprio mundo, serão revividas, a partir do momento em que a porta da pensão, em que se hospedara, é aberta para a entrada do irmão Pedro, revelando o que o crítico define como símbolo plástico, ou seja “[...] planos em que o movimento de um objeto ou um gesto – ou sua ressonância afetiva – pode evocar uma realidade de outra ordem” (Martin, 2003, p. 101-2).
A porta representa ainda “o próprio cosmo do Entreaberto” (Bachelard, 1993, p. 225), estabelecendo uma relação antagônica da visão de mundo de ambas as personagens, explicada por Jung como o medo do sótão e o medo do porão. Para Jung “a consciência comporta-se [...] como um homem que, ouvindo um ruído suspeito no porão, precipita-se para o sótão para constatar que não há ladrões e que, por conseguinte, o ruído era pura imaginação. Na verdade esse homem prudente não ousou aventurar-se no porão” (Jung citado por Bachelard, 1993, p. 36). Pedro mostra-se prudente, porém cego diante da realidade que André conseguiu enxergar na sua casa natal, principalmente quando exposto à claridade que segundo ele o perturbava.
Ainda na aplicação do conteúdo latente ou implícito da imagem descrita por Martin, Carvalho insere no contexto fílmico símbolos dramáticos que segundo o crítico são aqueles “que desempenham um papel direto na ação, fornecendo ao espectador elementos úteis para a compreensão do enredo (Martin, 2003, p. 102). Para representar a passagem de Ana da adolescência para a vida adulta, o diretor introduz a personagem num pequeno cômodo em que essa busca por um espelho com a intenção de verificar seus órgãos genitais e descobrir o porquê do sangramento. Neste mesmo instante a imagem é cortada e vê-se algum objeto sendo estilhaçado na cozinha. A quebra do objeto aliada ao sangramento de Ana sugere o rompimento de um ciclo e o início de outro, intensificando a narração que se faz através da justaposição das imagens, multiplicando as possibilidades de leituras.
Através da sobreposição de imagens o diretor também materializa o conteúdo mental de André. No momento em que se retira da casa do pai para viver na casa abandonada manifesta pela primeira vez, de forma explícita, seu desejo por Ana. A caminho da casa pára no bosque, seu local de alento, e envolto por ramagens que parecem brotar de seu próprio corpo nu, vocifera que poderá ser o profeta de sua própria história, da qual a irmã faz parte. É projetada então a imagem dela nua entrando na água, adiantando dessa forma um encontro que já estava marcado para acontecer, pois em seguida a imagem de seu avô surge na tela e a palavra “Maktub” é proferida. Para produzir efeito dramático o diretor faz uma tomada em plongée, minimizando o cenário do encontro, possibilitando a André exercer o domínio sobre o mundo que imaginara.
Outro símbolo dramático é a flor vermelha que Ana traz nos cabelos no momento em que dança para seduzir André. Segundo suas palavras, a flor se parece com um “coágulo” de sangue; esse coágulo vai representar a tragédia vivida pela família na cena final, na qual o pai ao descobrir o ato transgressor, num ímpeto de fúria, decide matar a filha.
Todos esses elementos reunidos se integram à configuração do espaço, considerando-se a influência que esse exerce sobre a personagem André e suas relações com o ambiente que o envolve, ou seja, a equação entre homem, sociedade, natureza e objetos (Artaud, 1993, p. 86). A cartografia da alma, que Carvalho desenha em Lavoura Arcaica, pode ser relacionada às considerações teóricas de Bachelard que, através da topoanálise, faz um estudo sistemático das imagens construídas desde a infância de nossa vida íntima no espaço habitado. Ele argumenta que todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, são indeléveis no ser humano (Bachelard, 1993, p. 28-29).
André carrega consigo todas as marcas de sua família e principalmente de sua casa, a qual é o ponto de referência na sua vida, e o é em termos gerais, pois abriga o devaneio, protege o sonhador e permite sonhar em paz. E são nos cantos da casa que se criam os locais de intimidade. Já na infância, ele vivia em seu quarto momentos de intimidade com a mãe, recheados de segredos. Era acordado por ela de maneira bastante carinhosa e revelava-se entre eles um amor diferente, além do amor entre mãe e filho. Ela constantemente se declarava para André dizendo: “meus olhos, meu coração e meu cordeiro”, palavras que eram repetidas por ele com a mesma intensidade.
Na medida em que atinge um grau maior de entendimento, o mesmo espaço que na infância abrigava seus sonhos se transforma em ponto de conflito. E sendo ele ainda o que o diretor convencionou chamar de o “dono do diário olho” (Carvalho, 2002, p. 37), uma vez que através do seu olhar são reveladas as intimidades e os segredos das outras personagens, como, por exemplo, os segredos dos membros da família que são postos a nu através da busca minuciosa que faz nos armários e mesmo nos cestos de roupa suja, esse processo, novamente, nos remete a Artaud que fala sobre as mensagens ocultas nos objetos.
            As imagens retratadas no filme mostram ambientes simples, mas austeros, especialmente a sala de jantar onde eram realizados os sermões do pai em que predominava a ausência de luz. Mesmo a casa abandonada, na qual André se refugia após ter enfrentado seu pai, denota a personalidade da personagem. O local é sujo, encontra-se destruído e compõe o cenário para sua solidão vivida, o que para Bachelard representa uma rejeição à vida, embora seja ali um dos locais escolhidos pela personagem para experimentar a conquista da sua “liberdade”. O quarto de pensão, exíguo e decaído, que ele vai habitar após sua fuga, também remete a essa concepção, sendo lá também que ele tem um encontro com suas verdades.
Entretanto, no jogo da memória da personagem, existem espaços que contrastam com aqueles cenários. O bosque era o lugar em que André se sentia à vontade, um espaço iluminado e profano onde os sentimentos são exteriorizados, principalmente durante as festas para comemorar o sucesso alcançado com os trabalhos no campo. Lavoura Arcaica registra dois momentos dessas festividades. No primeiro, além da dança que Ana realiza para André com o intuito de seduzi-lo, fica evidente que a personagem não tem uma relação próxima com sua família, exceto com a irmã, a qual admira desde a infância. O seu afastamento durante a celebração perpetua a idéia da solidão e do individualismo da personagem, que o levam a encerrar-se em si mesmo, mas criam, segundo Carvalho, uma relação de espaço, em função dos elementos presentes na cena que remetem à infância de André e com os quais ele estabelece íntima relação. É a mesma árvore, o mesmo chão em que afunda os pés quando quer exprimir os seus desejos.
Analisando os aspectos culturais, a família apresentada nos textos de Nassar e Carvalho pode inicialmente ser inserida no que Lévi-Strauss (1970) classificou como sociedades “frias” ou primitivas, ou seja, aquelas que se orientam pelo modo mítico de pensar em que o mito é definido como a “máquina de supressão do tempo”. Tais sociedades não incorporam valores externos e vivem dentro dos padrões que acreditam válidos para a manutenção de seus costumes. Na última conversa com André, essa cosmovisão é reafirmada por seu pai, cujo discurso austero, de cunho moralizante, está sempre impregnado de ecos bíblicos filtrados pelo seu próprio e estreito entendimento, configurando a “lavoura arcaica” implícita no título da obra. O patriarca reitera que nada poderá destruir o que levara milênios para ser construído e ninguém naquela casa haveria de dar curso novo ao que não pode ser desviado. André é o membro da família que vai contrapor-se a esses princípios ao revoltar-se contra o pai, partindo para enfrentar uma sociedade civilizada, ou “quente”, termo esse também cunhado por Lévi-Strauss, e que tem como principal meta o desenvolvimento. Entretanto, não é fora de casa que suas dúvidas e angústias são dissipadas. Ele retorna ainda mais revoltado e confuso, mas mesmo assim é bem recebido pela família que lhe prepara uma festa de boas vindas.
A festa marca a tragédia derradeira da família, e é Pedro quem vai deflagrar o quadro de violência ao relatar ao pai o envolvimento amoroso entre Ana e André. Enquanto os convidados se unem num círculo de dança, ele caminha pensativo e demonstra estar bastante perturbado com a revelação de André sobre o incesto. Revoltado com a postura incontida da dança de Ana, Pedro se aproxima da irmã e num misto de indignação e desejo se afasta correndo. Então, a câmera percorre lentamente as cercanias da árvore e focaliza os pés de André em contato com a terra. Esse flash remete ao recurso recorrente utilizado pelo diretor para expressar a excitação de André.
Em seguida, Pedro decide relatar ao pai o segredo que o irmão lhe contara. Na seqüência, o pai enfurecido, arremete-se sobre Ana, ceifando-lhe a vida. Aqui o diretor recorre a uma elipse para narrar a morte da jovem, substituindo a violência da cena por uma flor que perde suas pétalas ao rolar pelo chão ao sabor do vento, criando também uma metáfora dramática. O ímpeto de vida a que se refere o narrador corresponde por analogia ao desabrochar de uma flor, à própria Ana que ao soltar suas amarras torna-se dona do seu destino, imprimindo um tom fatalista às narrativas de Nassar e Carvalho.
A cena acima descrita evidencia também o distanciamento de André, até mesmo pela opção do diretor em excluir a imagem dele da festa. Nesta cena, segundo Carvalho, são usados somente os pontos de vista da personagem e seu corpo é representado apenas pelos planos de seus pés, tornando sua presença apenas sensória, não temporal, ficando impossibilitado de impedir o golpe fatal (Carvalho,  2002, p. 69).
            Se na abertura do filme André é mostrado como um animal em alerta, a cena final revela um animal abatido pelos acontecimentos, dominado pelo espaço e pelo tempo. Deitado, desolado, a câmera focaliza-lhe apenas o rosto, revelando um olhar perplexo que se perde na imensidão das alturas enquanto ele, mecânica e lentamente cobre seu corpo com folhas secas, retornando ao seu universo interior marcado pela escuridão.

REFERÊNCIAS
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993
CARVALHO, Luiz Fernando. Sobre o filme Lavoura Arcaica. Granja Viana – Cotia SP: Ateliê Editorial, 2002.
CHEVALIER, Jean & Gheerbrant, Alan. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva [et al]. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1989.
Lavoura arcaica. Brasil, 2002. 170 minutos. Dirigido por Luiz Fernando Carvalho.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2003.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Artigo publicado nos anais do XVIII CELLIP, 2007, Ponta Grossa/PR.

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