Resumos. Ensaios. Artigos. Resenhas. Análises. Críticas.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

TEORIA DA TRAGÉDIA (resumo)

            A tragédia é uma forma específica de imitação (mimese), segundo os critérios que diferenciam as artes miméticas e o efeito que a representação determina no espectador.
            É uma representação de ações de homens de caráter elevado (objeto da imitação) expressa por uma linguagem ornamentada – histórias artísticas (meio), através do diálogo e do espetáculo cênico (modo), visando a purificação das emoções (efeito catártico).

Partes qualitativas internas

- mito: história, enredo (imitação e composição de ações)
- caráter: qualidade moral
- pensamento: elemento lógico
- finalidade do homem: ação e vida
- ação: elemento central da tragédia

Partes do mito

- peripécia: ação sem consequencia aparente
- reconhecimento: revelação
- catástrofe

Tópicos do mito

1.ação correspondente a um todo de certa extensão e uno
- encadeamento ordenado de partes constitutivas (princípio, meio e fim)
- limite que a memória suporta para acompanhar a história
2. poesia e história
            - poesia: literatura
            - história: compromisso com a verdade
            - distinção entre a obra do poeta e do historiador
            - poeta representa o verossímil e o necessário
            - historiador narra os acontecimentos que realmente sucederam

Tragédia clássica

1. Peça teatral - imitação de ações de homens de caráter elevado
2. Suscita terror/piedade/catarse
3. Tensão crescente
4. Unidades
    - de tempo: sempre no presente (maior tensão); passado aparece em flashback
    - de espaço: todas as ações ocorrem no mesmo lugar
    - ação: nada pode faltar ou sobrar, verossimilhança/coerência (fatos que fazem sentido)
5. Herói - personagem principal - classes elevadas, não maniqueísta
    * maniqueísmo = simplificação
6. Poesia X história
7. Divisão
    - peripécia
    - reconhecimento
    - catástrofe


quarta-feira, 25 de maio de 2011

Análise do poema "The world is too much with us" de William Wordsworth

 Paraguassu de Fátima Rocha

The world is too much with us; late and soon,
Getting and spending, we way waste our powers;
Little we see in Nature that is ours;
We have given our hearts away, a sordid boon!
This Sea that bares her bosom to the moon,
The winds that will be howling at all hours,
And are up gathered now like sleeping flowers,
For this, for everything, we are out of tune;
It moves us not. – Gret God! I’d rather be
A pagan suckled in a creed outworn;
So might I, standing on this pleasant lea,
Have glimpses that would make me less forlorn;
Have sight of Proteus rising from de sea;
Or hear old Triton blow his wreathed horn.

             “The world is too much with us” é um soneto tradicional que segue o modelo binário italiano, é composto de 14 versos, sendo duas oitavas e dois sextetos.     Apresenta versos e rimas regulares. Cada verso é composto de 10 sílabas, cujas rimas externas dos quartetos seguem o esquema abba, sendo as rimas bb consideradas emparelhadas e as aa, interpoladas. Já nos tercetos, as rimas se apresentam como alternadas. Esse conjunto de rimas está ligado ao sentimento do eu lírico em relação à presença do homem no mundo e seu contato com a natureza. A ocorrência do fonema /u:/ como em “soon, boon, moon e tune” está relacionada ao lamento do eu lírico pelo progresso desordenado que afeta a natureza, enquanto que os fonemas /au/ de “powers, ours, e flowers” tentam retomar as imagens da natureza intacta, expressando ideias positivas. Essas rimas estão presentes nos dois primeiros quartetos do poema.
            Tem-se também no início do primeiro terceto um verso espondaico “ – Great God!” indicando  uma mudança de sentimento, pois  verifica-se a presença dos fonemas /i:/ e /Ɔ:/ nas rimas finais, o primeiro representando o apelo espiritual do eu lírico  para que a natureza escape da ação do homem. Isso se evidencia pela intensidade de suas palavras “Great God!”(9) que funcionam como um grito, uma invocação a Deus; e o segundo determinando uma solução pessoal e praticamente impossível desse problema.
            A disposição das palavras nos versos as rimas sugerem tanto o movimento das ondas do mar, quanto os sons da natureza, representados pela letra “w”, presente nas palavras “world, with, waste, we, winds e would” o que constitui uma aliteração e indica os diferentes cantares do vento. Verifica-se também a presença de rimas internas como “late/waste (1,2) see/sea (3,5),  might/sight (11,13).
            O simbolismo neste poema é criado a partir de imagens e metáforas que representam a paixão do poeta, William Wordsworth, pela natureza e o seu conflito com  o progresso, cuja comunhão é ironizada pelo poeta.
            O título e o início do poema constituem uma metáfora do pensamento humano sobre si mesmo e o sobre o domínio dado por Deus sobre as criaturas que habitam a Terra, além de transmitir a relação entre passado e presente que determinam através de lembranças o início de todas as coisas e como elas se modificam com o progresso, denotando o ciclo das coisas que acontecem na vida.  Essa ideia se exemplifica com o uso das palavras “late and soon”.
            O poeta demonstra seu cinismo quando se refere à ambição material causada pela Revolução Industrial no início do século XIX, fazendo alusão à ganância da espécie humana “a sordid boon” (4), à inocência da natureza “This Sea that bares her bosom to the moon,” (5) cujo verso representa, através da personificação do mar, uma das mais belas metáforas do poema, pois indica uma entrega somente possível na visão salvadora de Wordsworth, e que, juntamente com os versos que se seguem “The winds that will be howling at all hours,/And are up gathered now like sleeping flowers,/(5-7), sugerem  o quão indefesa é a natureza mediante a destruição feita pelo homem. No oitavo verso “For this, for everything, we are out of tune;” está expressa a visão da espécie humana ao tratar da natureza, pois não se comove e nem percebe os impactos ambientais que causa.
            Nos versos iniciais tem-se a acusação clara do poeta à idade moderna por haver perdido seu contato com a natureza e tudo que ela representa “Getting and spending, we lay waste our powers;” (2), significa que os seres humanos preocupam-se mais com valores materiais e perdem o seu contato espiritual com a mãe natureza. “Little we see in Nature that is ours;” (3) transmite a ideia de que a natureza não é um bem de consumo para ser explorada pelo homem, mas que deveria coexistir com a humanidade. “We have given our hearts away, a sordid boon” reflete a desilusão do poeta, pois em função do estilo de vida materialista, tudo perde seu significado original.
            A parte final do poema retrata o desejo do poeta em ser pagão “(..) I’d rather be/A Pagan sucled in a creed outworn;” (10-11) – novamente a referência à infância, uma vez que segundo o Cristianismo, a criança até ser batizada é considerada pagã – tendo portanto, uma visão diferente do mundo, de maneira que “(..) standing on this pleasant lea” (11) ele poderia ver imagens de deuses antigos levantando das ondas, uma visão que poderia gratificá-lo profundamente e funcionar como uma vingança da natureza contra o ser humano.  “Have sight of Proteus rising from the sea;/Or hear old Triton blow his wreathed horn.” indicam seu sonho de que estes deuses do mar poderiam salvar a natureza da ação predatória do homem.
            Ao longo do poema registra-se ainda a ocorrência de repetição de palavras com o mesmo nível semântico como “see, sight e glimpses”, todas relacionadas à visão do eu lírico sobre o passado e o presente; da palavra “sea” e de símbolos ligados a essa força na natureza como “Proteus e Triton”.
            Há ainda paralelismos sintáticos nos versos 5 e 6 “This Sea that bares her bosom to the moon,/ The winds that will be howling at all hours,”, nos quais o pronome “that” é usado como referência aos substantivos que o antecedem;  e versos 12 e 13 “Have glimpses that would (…)/Have sight of Proteus (…)”, cujo verbo “have” é usado na forma infinitiva sem “to” por preceder o verbo auxiliar “might” na pergunta feita no verso 11 “So might I, (...)”.
            William Wordsworth resgata através do eu lírico neste poema a maneira como ele gostaria de viver, ou seja, em perfeita harmonia com a natureza.
           

REFERÊNCIAS



GOLDSTEIN, NORMA. Análise do Poema. 1a. ed. Ática: SÃO PAULO: 2001. 48 p.
The world is too much with us. Disponível em: http://www.123helpme.com



sábado, 7 de maio de 2011

ORFEU: A REEDIÇÃO DO MITO ATRAVÉS DA PARÓDIA, DA APROPRIAÇÃO E DA INVERSÃO

 Paraguassu de Fátima Rocha

Tendo como base o Mito de Orfeu de Mario Meunier em La leyenda dorada de los dioses y de los héroes, será analisada, neste ensaio, a sua apropriação por Vinícius de Moraes na peça Orfeu da Conceição e a adaptação da peça para o filme de nome simplesmente Orfeu, dirigido por Cacá Diegues. Considera-se, nesta análise, o mito sendo projetado para o morro do Rio de Janeiro no tempo presente como um Orfeu negro, com seus encantos cariocas, suas crenças, e como o próprio Vinícius relata, essa transposição do mito grego para o morro, surgiu de uma incursão por favelas, macumbas, clubes e festejos negros no Rio, na qual  se sentiu “impregnado do espírito da raça negra” (MORAES, 1995, p. 47)
Segundo o autor, todas aquelas festividades tinham de alguma forma algo a ver com a Grécia, como se o negro fosse um negro despojado de cultura e, principalmente, o culto pela beleza, no caso, à raça negra sendo Orfeu o máximo do morro, como Apolo e não menos marcado pelo sentimento dionísico, pois Dionísio era a favor de qualquer coisa pela vida, mesmo que para ser vivida passe por situações esbórnicas, como o carnaval, por exemplo (MORAES, 1995, p. 47-48). Assim, Vinicius resgata o mito, que atravessando gerações reveste-se das características vigentes naquele período histórico: a peça Orfeu da Conceição data de 1956.
Se na antiguidade clássica o mito surgiu como representação idealizada de deuses, cujos poderes transcendiam à capacidade física do homem, na modernidade retrata o caráter humano, no qual prevalece a ambiguidade do ser.
No texto fonte, Orfeu é situado como um ser com poderes sobrenaturais que envolve a todos com sua música. Em sua trajetória, é comprometido pela tragédia da morte de sua amada, Eurídice, picada por uma cobra ao tentar escapar do pastor que pretendia violentá-la. Orfeu, inconformado, desce ao inferno para resgatar a amada, enfrentado criaturas mitológicas e apaziguando-as com sua música.
Na peça, Vinicius de Moraes retoma esse mito, emprestando-lhe as nominações e a situação trágica, entretanto, veicula características adequadas à realidade espaço-temporal em que a peça é escrita e orienta para que as possíveis montagens sigam, especialmente, as variações a que a língua está sujeita.
Segundo Vinícius,

Tratando-se de uma peça onde a gíria popular representa um papel muito importante, e como a linguagem do povo é extremamente mutável, em caso de representação deve ser ela adaptada às suas novas condições. (MORAES, 1954, p. 54)

 A lenda de Orfeu ocorre na Trácia, região histórica da Europa e hoje parte da Grécia. Vinícius, no entanto, transporta-a para um morro carioca, onde desfilam personagens arquetípicos, tomando-se como exemplo o próprio Orfeu, representante da realidade daquela comunidade, uma vez que é mostrado como compositor de sambas e que em lugar da lira, toca violão. Ora, de onde vieram alguns dos principais sambistas brasileiros como Noel Rosa e Cartola, senão do morro?
            Nessa aproximação do mito de Orfeu à década de 50, quando a peça foi escrita, Vinícius de Moraes incorre no que Raul Filker em Mito e Paródia: entre a narrativa e o argumento denomina de modalidade temática direta por escolha deliberada. Para o autor, a escolha de um tema já conhecido objetiva “desenvolver através de interpretação, modificação ou acréscimo, um diálogo com o tema em questão onde a nova voz se privilegia do espaço já ocupado pela antiga, que conta com longa tradição de difusão”  (FILKER, 2000, p. 70).
            Ou seja, a descida ao inferno para resgatar a amada assume contornos atuais na peça de Vinícius. No mito original, Orfeu desce às profundezas da terra e enfrenta Erinias, Cérbero e o Rei das Sombras enquanto que no texto de Vinícius ocorre a modificação do ambiente, no qual o inferno é representado por um clube, cujo nome “Os maiorais do inferno” estabelece diálogo com o anunciado no texto fonte. Cérbero é aqui representado por um leão-de-chácara, o Rei das Sombras por Plutão que providencialmente encontra-se sentado “num trono diabólico” (MORAES, 1954, p. 83) ao lado de Prosérpina,  cujo cenário sugere, pela presença do fogo e a dança isolada dos frequentadores do clube, o próprio inferno.
            Ainda no texto original, Orfeu resgata Eurídice, mas acaba perdendo-a novamente por não cumprir o acordo feito com o Rei das Sombras. Já no texto de Vinicius, o encontro entre Orfeu e Eurídice ocorre no plano dos fundamentos da Semiótica de Pierce, citado por Lúcia Santaella em O que é semiótica. Para o autor fica estabelecida a relação entre signo, objeto e interpretante, e segundo ele:

Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente de tal modo que, (...) determine naquela mente algo que é imediatamente devido ao objeto (...). (SANTAELLA, 2005, p. 58)
               
                Na peça de Vinícius, tem-se nas “mulheres” que se apresentam a Orfeu como sendo Eurídice, o signo, uma vez que figuram na mente de Orfeu a própria amada, o objeto, e essa  relação produz o que Pierce convencionou como “interpretante”, ou seja a tradução do signo, o que pode ser constatado na fala de Orfeu ao se dirigir às mulheres: “Vem, Eurídice. Eu te encontrei. Eurídice é você, é você, é você! Tudo é Eurídice. Todas as mulheres são Eurídice.” (MORAES, 1954, p. 92). Essa mesma passagem é retomada no filme de Cacá Diegues, porém assume contornos diferentes, conforme será analisado adiante.
A questão do amor incondicional e platônico entre Orfeu e Eurídice é também um caso intersemiótico, pois transcende ao mortal. É um amor que já existia sem eles saberem e, que no filme, manifesta-se pelo primeiro olhar que Eurídice lança a Orfeu quando chega ao morro ou ainda no momento em que Orfeu canta à Eurídice seu amor, sem saber que este não demora a chegar, representado na peça de Vinícius com a valsa de Eurídice:

São demais os perigos desta vida/ Para quem tem paixão, principalmente/ Quando uma luz surge de repente/ E se deixa no céu, como esquecida./ E se ao luar que atua desvairado/ Vem se unir uma música qualquer/ Aí então é preciso ter cuidado/ Porque deve andar perto uma mulher./ Deve andar perto uma mulher que é feita/ De música, luar e sentimento/ E que a vida não quer, de tão perfeita./ Uma mulher que é como a própria lua:/ Tão linda que só espalha sofrimento/ Tão cheia de pudor que vive nua. (MORAES, 1954, p. 56)

A musicalidade que compõe tanto a peça quanto o filme é definida por Bertold Brecht em Estudos sobre o teatro como sendo “um gesto que determina a linguagem” (2005, p. 237-38), pois é através dessa que observamos todo o amor de Orfeu por Eurídice, assim como é mostrada através da música, dos gestos sociais que se aplicam aos moradores das favelas, no caso o hap, exprimindo a desigualdade social do povo do morro “os aqui de cima” e os demais “lá de baixo”, como é colocado no filme. A paródia, nesse caso, está justamente aí, pois na peça percebe-se uma relação mais restrita ao amor dos personagens principais. Já o diretor Cacá Diegues teve uma visão da peça um tanto mais “realista”, havendo um deslocamento maior no que diz respeito ao povo da favela e suas mazelas.
Observa-se, por exemplo, no caso da paródia, o próprio carnaval, pois esse pode tanto determinar a alegria que a festividade causa no povo da favela  que  guarda seu dinheiro o ano todo para viverem um único momento de suas vidas que é mágico, enquanto passam fome o ano todo, mas o que importa é o viver, o morrer está logo ao lado, então por que não viver o pouco que resta. Essa situação dionísiaca pode ser conferida no trecho da peça em que Plutão, o presidente dos maiorais, exercendo uma espécie de Dionísio, julga a festividade para ser vivida com a maior intensidade: “Triste de quem não quer brincar, que fica a labutar ou a pensar o dia inteiro! Triste de quem leva a vida a sério, acaba num cemitério, trabalhando de coveiro!” (MORAES, 1954, p. 84). A paródia caracteriza a inversão de valores que é o carnaval,  trazendo o luxo e o lixo, associados à alegria e, ao mesmo tempo, à luxúria, época de maior prostituição, alcoolismo, tráfico de drogas, pois os olhares estão voltados para a festa, os “governantes” estão voltados para a festividade.
A intertextualidade está presente no filme como uma paródia da peça, pois todas as feridas do morro estão ali configuradas. Affonso Romano de Sant’Anna e Shipley discriminam a paródia em três tipos:  verbal, formal e temática. Pode-se defini-las   exemplificando-as com passagens tanto da peça quanto do filme. No caso da paródia verbal, encontram-se  alterações de uma ou outra palavra do texto. Nesse caso, tem-se Orfeu chamando por Eurídice depois de encontrar com a Dama Negra, como sendo a figura da morte, ele tem medo de Eurídice nunca mais voltar e essa então resolve cair em sua cama : “Eurídice? Que sonho tive eu/ Minha Eurídice! ... EURÍDICE - Quer a sua morena tanto assim? ORFEU – Não é nem mais querer ... é coisa ruim/ É morte!” (MORAES, 1954, p. 77-79). Na peça, a presença da Dama Negra, representa a morte. No filme temos a colocação da sombra de uma asa delta projetada sobre Eurídice, como se chamando para morte e é a própria Eurídice que o chama ao telefone quando pensa que Orfeu não está mais na linha. Existe, então, uma alteração dos chamados, como uma premonição, que os conduz para o fim trágico.
No que se refere à paródia formal, tem-se na peça de Vinícius, no segundo ato, o inferno. O autor usa os efeitos técnicos do carnaval para zombar, no clube dos Maiorais, da loucura de Orfeu pela perda de Euridíce, em meio à luxúria, às batucadas do samba de carnaval, conforme o fragmento da peça:

ORFEU – Eu quero Eurídice!/ ... /PLUTÃO – Pra fora! Aqui não tem Eurídice Nenhuma. Tas querendo é me acabar com o baile, pilantra? Aqui mando eu! Pra fora, já disse! PROSÉRPINA – O cara ta é cheio. Deixa ele, bem, senão é capaz de sair estrago. Vem cá, dá um beijinho./ ... / AS MULHERES (dançando) – Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? Quem foi que disse que eu não sou Eurídice?/ ... / PLUTÃO – Ninguém sai daqui sem ordem do rei! Aqui é o rei quem manda! Toca a música! Onde está a música? Cadê o bumbo o tamborim a cuíca o pandeiro o agogô? Toca o apito! Começa o samba! Não acabou o Carnaval ainda não! (MORAES, 1954, p. 89-90).

No filme, essa cena, que também antecede a morte de Orfeu, traz as mulheres saídas do carnaval bêbadas, zombando do seu estado de loucura com Eurídice nos braços e repetindo as falas da peça “Quem foi que disse que eu não sou Eurídice!”, o que provoca a ira de Mira em meio ao resultado da escola de samba vencedora na quarta feira de cinzas. Verifica-se, também, uma troca de letras no nome de Eurídice para Eurídoce desenhado no muro da favela, estabelecendo um trocadilho com seu nome para mostrar toda a sua doçura.
A paródia do tipo temática vai fazer uma caricatura da forma e do espírito do autor, ou seja, o tema escolhido por Vinícius reforçado por Cacá Diegues é justamente o carnaval, pois é durante a festividade que o povo do morro desce para a cidade. O inferno do Orfeu negro seria o carnaval carioca. Orfeu buscaria Eurídice em meio ao ritmo desencadeado das escolas de samba, dos passistas, dos mascarados em travesti, dos negros libertando-se de sua pobreza no luxo das fantasias compradas às custas de economias de um ano.
Quando Cacá Diegues coloca no filme a “Tia Carmem”, amarga e recalcada, quer ironizar, por meio da paródia, seu estado de conformação pela vida que leva, enfatizando sempre os seus finais de fala com “meu bem” ao tratar com sua sobrinha Eurídice. Ela, recém chegada do Acre, recebe um tratamento irônico por parte do diretor que  ridiculariza a ignorância e a falta de cultura das personagens que consideram que Acre e Amazonas são a mesma coisa por mais que Eurídice tentasse estabelecer a diferença. Tia Carmem ironiza ao fazer críticas sociais e ao tratar de  sua própria vida. Os policiais no filme se auto-ironizam, sabendo que no morro não podem fazer nada, a não ser mostrar serviço. Ao chegar lá, fazem alarde para que os traficantes fujam e tentam, em vão, pegá-los como no caso da caça ao traficante Lucinho, afilhado de um dos policiais. A colocação do tema do estupro, da bala perdida no morro, da compra do tênis desejado a qualquer preço, situação essa vivida pelo personagem Maicol, de Michel Jackson, figura arquetípica do jovem que quer estar na moda. A situação da saúde pública também é apresentada como paródia na peça quando Vinícius coloca a figura do médico com descaso em meio a loucura de Clio, mãe de Orfeu: “O HOMEM – Ta pronto, minha gente!/ Trouxe a maca. A ambulância está embaixo/ Que caras mais folgados ... Adivinha/ O que disse o doutor? ... “Vocês são fortes/ Subam e tragam a mulher que eu espero embaixo/ E depressa que eu tenho um caso urgente/ Me esperando ...” (MORAES, 1954, pág. 100).
O cotidiano revela o sofrimento diário das pessoas as quais não conseguem ter uma ideologia, algo em que acreditar para ser feliz. Dona Conceição resume a felicidade no filme de uma maneira bem simples “felicidade meu filho é uma geladeira cheia de feijão e cerveja com o remédio da gripe ao lado do pinguim”, pinguim esse que simboliza o pobre, afinal que pobre não tem um pinguim de geladeira?
Conforme enunciado anteriormente, o filme Orfeu nada mais é do que uma paródia da peça de Vinícius com suas situações cômicas. Além disso, o filme parodia o mito do Orfeu grego como um negro. No momento em que Eurídice está provando sua fantasia, logo atrás dela há uma televisão em que Grande Otelo, satirizando o mito, aparece vestido de grego sendo negro e dançando. Parece ridicularizar a figura do Orfeu, um ser pomposo, um Deus.
No que diz respeito à parte social do filme, tem-se a presença constante de armas, do começo ao fim. Desde a queima de fogos que pode virar um tiroteio, o que é algo normal para o povo do morro, assim como tentar fazer algo sem elas, como foi passado no filme, é impossível. Isso pode ser verificado na fala da moça do bando de Lucinho, quando Orfeu o intima sem usar uma arma sequer, ela o indaga: “Quantas R- 15 você tem?”, pois tudo é tratado na base de armas.
A paródia, além de ser usada como crítica social, também se revela contraditória nas ações e no discurso das personagens e pode ser verificado na fala de PC quando diz: “se eu tiver um filho drogado, eu quero matar de tanto dar porrada” o que não se aplica a ele, ou seja, como diz o ditado popular “faça o que eu falo mas não faça o que eu faço”, isso dentro de um contexto tão susceptível ao uso da droga, droga essa que é bem retratada pela personagem do bando de Lucinho: “Viver faz mal a saúde”, o que deveria ser “Viver faz bem a saúde”.
            A paixão de Orfeu e Eurídice, seus encontros e desencontros, assim como suas alegrias e tristezas não são os únicos elementos a serem vistos dentro da obra, pois tanto Vinícius quanto Cacá quiseram, com a paródia, não mostrar apenas a relação de amor entre eles ou o ódio que esse amor projetou para os demais, incitando a inveja e o ciúme, por exemplo. Ambos,  enfatizam o lado social do morro com suas mazelas, a riqueza da cultura negra ou  a falta dela, levando em consideração o fator cômico, com suas contradições, enfim , o que o morro representa tendo como tema base o carnaval. Tudo isso é um grande paradoxo pois, sendo a favela uma vergonha social para o país, o resultado de um regime de exclusão que gera miséria e injustiça, ela é também um tesouro cultural e de condições humanas, que precisa ser descoberto, como diz Cacá Diegues.
            A versão fílmica de Orfeu, de Cacá Diegues (1999) apresenta o conjunto das diferenças de paródia e apropriação. A paródia incide sobre a peça teatral de Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição (1953) e a apropriação se faz em relação a mesma peça e também sobre o mito de Orfeu – mitologia grega. Além dos conjuntos citados, verifica-se também um processo de inversão, dentro da narrativa da versão teatral e da versão cinematográfica.
              A apropriação ocorre quando a personagem central recebe o mesmo nome do personagem mitológico e o transporta para nova época e realidade, fazendo-o transitar por novas experiências – provoca o deslocamento de tempo e lugar para nova narrativa. Conforme argumenta Afonso Romano de Sant’Anna (2003, p.45), o fenômeno de apropriação também verifica-se em cenas onde objetos estão presentes fora de seu contexto [...] eles re-apresentam os objetos em sua estranhidade.
                 A cena, por exemplo, em que a personagem-protagonista desce uma encosta para resgatar sua amada Eurídice mostra um cenário construído com vários artifícios de outras realidades, artifícios esses que colocados em cena representam uma bricolagem e um estorno de seus verdadeiros sentidos, dando uma conotação de uma verdadeira  “visão do inferno” que foi descrita de outra forma na peça teatral e também na personagem mitológica; essa articulação nada mais é do que mais uma demonstração de apropriação. Segundo Sant’Anna (2002, p. 46), “[...] na apropriação o autor não “escreve”, apenas articula, agrupa, faz bricolagem do texto alheio; [...] ele não escreve, trans-creve, colocando os significados de cabeça para baixo”.
                 A versão cinematográfica de Orfeu, por se apresentar como uma paródia da peça teatral, exprime-se em um conjunto de diferenças e inversão, pois traçando-se um paralelo entre as duas peças vê-se dados na segunda versão como uma imagem invertida da primeira, ou seja, alguns significados apresentam-se em seu paroxismo. Nessa versão, a história de Orfeu sofre um processo de apropriação e inversão que são variantes da paródia e apresenta uma conotação crítica dentro de um contexto e a realidade em que vivem os habitantes da favela nos morros da cidade do Rio de Janeiro.
             Orfeu da Conceição, fruto de anos de trabalho é, no dizer do poeta, “uma peça em homenagem ao negro brasileiro, a quem, de resto, a devo” O autor não explica o porquê dessa homenagem, pois certamente escreveria páginas e páginas. O texto lembra um mito, mas na realidade é uma paródia, uma crítica, um desabafo, um retrato da época passada e da atual  em que brancos, pardos e negros são discriminados. Parece ser isso o que Vinícius quis mostrar: a vergonha, a miséria e a injustiça social do país.
Os Orfeus vêm e  vão, mas sua música, sua voz ficarão para sempre na memória daqueles que receberam o conforto por meio delas. 

REFERÊNCIAS  
BRECTH, Bertold. Estudos sobre o teatro. São Paulo: Nova Fronteira, 1978.
DIEGUES, Cacá. Orfeu, 1999.
MORAES, Vinicius de. Teatro em verso. Org. Carlos Augusto Calil. São Paulo: Cia. das Letras.
__________________. Orfeu da Conceição, 1954.
FILKER, Raul. Mito e paródia: entre a narrativa e o argumento. São Paulo: Unesp, 2000.
SANT’ANNA, Affonso R.de – Paródia, Paráfrase & Cia. Ed. Ática, 2003.
SANTELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2003.
SHIPLEY, Joseph T. Dicionário de literatura.