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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

EÇA DE QUEIRÓS E A CRÍTICA AO ROMANTISMO

       
Paraguassu de Fátima Rocha

  Eça de Queirós representa o marco do Realismo-naturalismo português que tinha como um dos principais objetivos libertar o povo da mentalidade romântico-cristã, apresentando novas idéias filosóficas e cientificas, dentre as quais destacam-se o determinismo e o darwinismo no Realismo, e a preferência por temas patológicos, o objetivismo cientifico e a impessoalidade no Naturalismo.
            Seguindo essas tendências, o autor cria em suas obras, personagens capazes de combater os princípios românticos como a idealização do herói e da mulher, e a perspectiva do amor como redenção.
            Em O crime do padre Amaro (2004), além da crítica aos costumes sociais e ao clero, Eça de Queirós apresenta a personagem Amélia que ainda apresenta algumas características românticas como o sentimentalismo – é descrita como romântica e sonhadora. Sua educação religiosa, no entanto, a faz acreditar em Deus como um ser punitivo “que só sabe dar sofrimento e morte, e que é necessário abrandar os padres”. Em função disso, entrega-se a Amaro, não por amá-lo como homem, mas sim pelo que a figura dele representava. O casamento é outro aspecto abordado na obra de Eça de Queirós. Enquanto no romantismo ele representava a proteção contra o surgimento de problemas e era o objetivo principal dos apaixonados, no realismo ele surge como uma proposta de estabilidade social, fato comprovado pelo comportamento da jovem Amélia ao aceitar o pedido de casamento de João Eduardo, mesmo sem demonstrar o menor interesse por ele. Finalmente, tem-se a fragilidade da personagem, pois era frequentemente acometida de febres e falta de apetite, especialmente diante de situações conflitantes.
            Poderia uma heroína romântica entregar-se tão completamente aos instintos biológicos apregoados pelo Naturalismo? Não, e é dessa forma que o autor estabelece a sua crítica direta ao romantismo, pois além de criar um anti-herói, representado por Amaro, transforma Amélia numa personagem alienada e ingênua que vê sua vida arruinada devido a sua educação religiosa. E mesmo a morte da personagem não se enquadra nos princípios românticos, ou seja, a consequência de um amor impossível. O que prevalece é a teoria da seleção natural em que os mais aptos sobrevivem, enquanto os mais fracos são eliminados, ao se pensar no final dado a Amaro que sai ileso dos crimes que cometera.  O motivo da morte de Amélia não é revelado no romance, e acredita-se que tenha sido essa uma estratégia do autor para não se posicionar favoravelmente ao darwinismo.
            Como crítica ao romantismo tem-se ainda outros personagens que são retratadas de forma patética, como, por exemplo, Arthur ao interpretar uma canção romântica, expressando-se de forma sentimental e lúgubre, ou mesmo o Tio Cegonha, apresentado como um personagem do romance picaresco, no qual o personagem principal é uma pessoa ridícula, “Chamavam-lhe Tio Cegonha, pela sua alta magreza e o seu ar solitário.” E finalmente, a referência a palavra spleen (melancolia), muito usada pelos românticos. Em uma conversa entre João Eduardo e Gustavo, este lhe sugere que abandone o spleen e se estabilize.
            Nos seus contos, Eça de Queirós também apresenta  a tendência de estabelecer críticas ao romantismo, muitas vezes de forma irônica e irreverente. A temática central adotada por ele é a critica aos  sentimentalismos e à escola romântica, seja pelo aspecto ilusório da mulher ou pela degradação do ser humano através das leituras românticas e, finalmente, o pessimismo representado pelo vício em alguns personagens.
           Macário, o protagonista do conto “ Singularidades de uma rapariga loura”, tem uma construção realista, como é possível perceber neste trecho: “(...)porque os Macários eram uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes, que mantinham com uma severidade religiosa a sua velha tradição de honra e de escrúpulo. Macário disse-me que nesse tempo, em I823; ou 33, na sua mocidade, seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazém de panos, e ele era um dos caixeiros. Depois o tio compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do talento prático e aritmético de Macário, e deu-lhe a escrituração. Macário tornou-se o seu «guarda-livros».” Contudo seu autor, Eça de Queirós não “consegue se livrar” da presença desses elementos. De antemão faz uma referência a Goethe, um escritor clássico (e porque não considerá-lo um dos fundadores) do romantismo (“Estas pequenas cortinas datam de Goethe e elas têm na vida amorosa um interessante destino: revelam”).
             O exagero era uma característica romântica. Eça utiliza-se desse recurso nesse conto de uma maneira degradante. Não se exagera o sentimentalismo. Antes, isso o aflige, torna-se de certa forma um estorvo em sua vida (“onde estava todo o romance impaciente dos seus nervos”). Também é aniquilando todo e qualquer resquício maniqueísta (“O seu trabalho tornou-se logo vagaroso e infiel e o seu belo cursivo inglês, firme e largo, ganhou curvas, ganchos, rabiscos [...]” que podia ser encontrado em um personagem como Macário.
            A fé que também era valorizada no romantismo não “passou em branco” aos olhos de Eça, que também era bastante crítico no tocante a religião:” Foi um beijo [...] mesmo porque a única testemunha foi uma imagem em gravura da Virgem, que estava pendurada no seu caixilho de pau-preto, na saleta escura que abria para a escada...  Um beijo fugitivo, superficial, efêmero. Mas isso bastou ao espírito reto e severo para o obrigar a tomá-la como esposa, a dar-lhe uma fé imutável e a posse da sua vida”. Percebe-se uma banalização em primeira mão do momento romântico criado. No romantismo a natureza era de certa forma uma testemunha de um amor infindável. Porém há uma quebra nessa ideia romanesca, pois a única testemunha desse beijo é uma imagem que por estar em uma sala escura “não consegue enxergar” o momento sublime para Macário, momento esse que fora descrito como passageiro, vazio, sem valor, atacando assim não só a fé romanesca mas mais uma vez o sentimentalismo. 
            No livro Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett também se encontram críticas ao romantismo, mas uma em especial: “Todo o drama e todo o romance precisa de: Uma ou duas damas. Um pai. Dois ou três filhos, de dezenove a trinta anos. Um criado velho. Um monstro, encarregado de fazer as maldades.”
          Eça baseia-se em alguns elementos descritos no livro de Garrett. As duas damas são Luísa e sua mãe. O tio Francisco é como se fosse o pai, autoritário, ao não consentir com seu casamento com Luísa. Macário assume em si mesmo, ora o papel de “herói” lutando pelo amor que o impulsiona a prosseguir ora o de “donzela” tomado pelo desespero e pelo choro
          O romantismo tinha também um apreço, um gosto do pitoresco, do exótico. Que é veementemente criticado por Eça, pois Macário quando viaja para Cabo Verde, ao invés de encontrar paisagens pitorescas,  encontra  muito trabalho e sofrimento que por fim venceu. Muitas outras críticas são feitas nesse conto e com tal seriedade que parecem pertencer a era romântica, entretanto trata-se de uma obra do período romanesco.
          No conto “No moinho” fica bastante evidente a falta de coerência, pois marca o “caminho inicial”, que vai desde a “senhora modelo” até a “mulher promíscua”, criando assim, uma ambigüidade, já que nos referimos a uma mesma personagem. Inicialmente, a mulher modelo vive única e exclusivamente para cuidar do marido inválido e dos filhos doentes. Em dado momento, essa mesma mulher vive entre devaneios, pensando até mesmo em apressar a morte do marido, deixando os filhos sujos e sem comida até tarde. Torna-se uma mulher promíscua. Não podemos deixar de salientar que toda essa mudança de caráter foi provocada por um simples beijo de seu primo. Tudo isto vai ao encontro da visão romântica tida como politicamente correta. Não há sequer um final feliz, muito comum nesse estilo.
              Apesar da variação temática, pode-se perceber no conto de Eça uma grande preocupação com as dores humanas. Seus personagens são normalmente tristes, alguns incrédulos ou céticos, outros ingênuos, entretanto são sempre atormentados.
Extremamente crítico, dominando uma prosa ágil e irônica, Eça traçou em suas obras retratos da sociedade portuguesa da época.
A crítica ao ultra-romantismo também está presente no conto “José Matias”, pois esse ao se apaixonar por Elisa, limita-se a contemplá-la sem nada fazer para realizar o seu amor. Isso faz com que se entregue à bebida e seja vítima de uma confusão mental de amor e idolatria, caindo, portanto, num processo de degeneração.
Nesse conto fica evidente a análise do comportamento humano, pois o narrador frequentemente refere-se as atitudes de seus personagens como parte de seus estudos, traduzindo assim a tendência do Realismo para a investigação psicológica.
Para Eça de Queiroz, nas transformações ocorridas em função das tendências Real-naturalistas não há espaço para idealizações, contemplações e sentimentalismos, e aqueles que têm sua vida perturbada por fatores externos passam a sofrer consequências sociais, morais e do meio em que vivem, transformando-se em marionetes nas mãos do destino.
REFERÊNCIAS
CEREJA, W.R et all. Português Linguagens. São Paulo: Atual, 1999.
MOISES, M. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix.., 1999.
GARRET, A. Viagens na minha terra. São Paulo: Martin Claret, 2003.
“No moinho”. Disponível em: http://www.feranet.21.com.br. Acesso em 09 nov. 2004.
O Crime do Padre Amaro. Disponível em: http://www.mundocultural.com.br
QUEIRÓS, E. O Crime do Padre Amaro. São Paulo: Martin Claret, 2004.
QUEIRÓS, E. Os melhores contos de Eça de Queirós. São Paulo: Círculo do Livro
Singularidades de uma Rapariga Loura. Disponível em: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/caract_romant.htm. Acesso em 06 nov. 2004.






           

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A BUSCA DE SI MESMO EM "A HISTÓRIA DE UM HOMEM' DE SHERWOOD ANDERSON

          
Paraguassu de Fátima Rocha

            Conto metaficcional, no qual o narrador-personagem relata sua experiência como jornalista ao tentar desvendar o comportamento do personagem representado por Edgar Wilson, cujo passado é envolto em mistérios,  pois se desconhece sua origem e também o que se passara em sua vida até a chegada a Kansas. Kansas e a cidade de Chicago constituem o espaço no qual as  histórias acontecem. Trata-se, portanto, de uma história inserida em outra.
            O narrador, ao longo da história, foge da linguagem jornalística e tenta realizar uma análise subjetiva dos acontecimentos “Seja como for aí vai a história, uma história como se gosta de contar, de fio a pavio, sem emprêgo da gíria jornalística (...)”. O que de fato o intriga é a total alienação de Edgar Wilson  no tocante ao crime que tirou a vida de sua mulher. Essa curiosidade está presente em todo o conto, no entanto, não é apresentada uma conclusão por parte do narrador, considerando-se ele mesmo incapaz de explicar tal comportamento, “Parece ao leitor tudo isso mui emaranhado, não é verdade? Talvez. E’ possível que a mente de quem me lê seja mais clara do que a minha; que aos outros se afigure muito simples o que a mim se apresenta cheio de dificuldades.” O que se percebe é que o narrador está preparado para formatar uma notícia e não fazer uma análise psicológica do personagem em questão. Ficando clara uma característica marcante do jornalismo que é a curiosidade, que se consideraria aqui, além do motif do conto, também como um arquétipo da profissão.
            Entretanto, há uma tentativa de entender o movimento interior do personagem Edgar Wilson, caracterizando-se assim o enredo psicológico. Para tanto, o narrador faz uso dos poemas escritos por esse personagem, que mostram o que ele  pensava a respeito de si mesmo e do mundo que o cercava. Edgar Wilson, de acordo com seus poemas era uma pessoa egoísta e sombria, pois um dos termos recorrentes da poesia do personagem são os poços fundos, que podem ser considerados como uma via de comunicação com a morada dos mortos, segundo o Dicionário de Símbolos. Nas linhas de seus poemas é possível vislumbrar  o que Clarice Lispector costumava chamar de “costurar por dentro”,  referindo-se a busca interna do personagem.
            Wilson é definitivamente um personagem introspectivo e o leitor, ao ler sua historia, pode ver-se nela. Naturalmente, não com relação ao assassinato, mas com a busca que cada pessoa faz em sua vida.  Alguns não sabem o que estão procurando, outros têm essa consciência, entretanto não sabem exatamente o que buscam.
            O texto não é claro com relação a isso, mas essa poderia ser uma das razões que levaram sua mulher a se apaixonar por ele. Também não é mencionado, entretanto, o leitor pode considerar que ela tinha os mesmos questionamentos, as mesmas dúvidas e a mesma busca interior de  Wilson. Atualmente, o ser humano  busca por algo que não sabe o que é exatamente. Muitas vezes, voltam sua busca para  valores materiais, entretanto quando encontram, percebem que estão vazios por dentro sem conseguirem resolver seus problemas internos.
            Edgar reagiu de uma maneira completamente inusitada. Como ele não percebeu que sua mulher fora atingida por um tiro. Como não notou que ela estava sangrando e precisava de cuidados médicos? Esse é o retrato de como a sociedade reage a algumas situações. Há algumas hemorragias que são como buracos, e tendem a ser ignoradas. A pobreza, a violência, a fome, por exemplo, mostram o quão apática é a sociedade. Naturalmente, esses problemas não podem ser considerados diretamente como culpa da sociedade, mas sim uma força negativa que habita o coração do homem.  Contudo, ela poderia fazer alguma coisa para diminuir esses problemas, assim como o personagem quando se viu diante daquela situação. O comportamento mais adequado e nobre de um marido apaixonado seria proteger a pessoa que ama, mesmo que isto soe como romântico, e até mesmo utópico nos dias de hoje, é o que se esperava que ele fizesse. No entanto, como se estivesse vivendo em outra dimensão, permitiu que ela morresse como um animal, sem nenhum socorro. “Pode um homem ser indiferente e brutal, na aparência, quando o indivíduo que lhe é mais querido está moribundo – (...)”. É assim que a sociedade reage, fazendo a mesma coisa que Wilson fez, fechando seus olhos e permitindo que aconteçam coisas que não são dignas para nenhum ser humano.
            Outro aspecto importante a ser considerado nesta análise, é o ambiente descrito pelo narrador, pois está diretamente ligado aos conflitos internos do personagem. Edgar Wilson mudou-se para a Chicago com sua mulher e viviam num lugar bastante descuidado, um pouco pela ação do tempo e também pela falta de interesse de seus habitantes em conservá-lo e melhorar sua aparência. “O bairro (...) era composto todo de velhas casas transformadas, em cujas janelas se viam incríveis cortinas de rendas, muito sujas. Algumas paredes ameaçavam franca ruína; precisamente numa dessas morava Wilson  com a amante.” Além de Wilson e a amante, morava neste prédio também outra mulher que representa uma das fontes do narrador na tentativa de desvendar o mistério que envolvia a vida daquele personagem.
            No transcorrer do conto o narrador faz uso de flashbacks, caracterizando assim o tempo psicológico do conto. A narrativa tem início em Chicago onde vivia o narrador-personagem e onde ele toma conhecimento da existência de Wilson. Para apresentar a amante desse personagem ele volta no tempo para a cidade de Kansas, onde ela morava e conheceu Edgar. Esse recurso é utilizado ao longo de toda a narrativa, uma vez que o narrador vai inserindo elementos pertencentes ao passado com o intuito de elucidar sua investigação.
            Neste conto, a vida do narrador parece estar ligada à do personagem, pois embora seu objetivo fosse entender o que se passava com Edgar Wilson, percebe-se também a necessidade daquele em encontrar um sentido para sua própria vida.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Sherwood. História de um homem. In: Primores do Conto Universal – Contos Norte-Americanos.  São Paulo: Edigraf. p. 157-172.
GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas.  7a. ed. São Paulo: Ática, 2002. 70 p.
CHEVALIER, Jean, GHEEBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números.  Com a colaboração de André Barbault et al. 9a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.

ANÁLISE DO POEMA "O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL" DE CESÁRIO VERDE

      
Paraguassu de Fátima Rocha

A análise do poema “O sentimento dum ocidental” de Cesário Verde revela aspectos comuns às artes plásticas, sendo que essas apresentam, segundo Coleridge citado por Bosi (1991, p. 31), uma imaginação construtiva, ou seja, uma estrita relação entre o conhecimento do mundo e a construção original de outro mundo.
            Isto fica evidente no poema composto por estrofes de quatro versos, dividido em quatro partes de onze estrofes, através das quais o poeta faz um passeio pelas ruas de Lisboa, inaugurando uma descrição simbólica do espaço vivo da cidade.
            Na primeira parte do poema, cujo título, “Ave Maria”, sugere o cair da tarde e o  início da noite, momento no qual as pessoas se reuniam para fazer suas orações, o eu poético inicia sua caminhada, fazendo uma descrição objetiva da cidade, sem contudo deixar de transparecer suas impressões interiores. Observa-se isto nas primeiras estrofes:
                                   Nas nossas ruas, ao anoitecer,
                        Há tal soturnidade, há tal melancolia,
                        Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
                        Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
                                   O céu parece baixo e de neblina,
                        O gás extravasado enjoa-me, perturba;
                        E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
                        Toldam-se duma cor monótona e londrina.
            Já na terceira estrofe, percebe-se que o eu lírico busca um paraíso que não se encontra em sua cidade, mas em outros lugares como as importantes capitais da Europa, e que o povo português tem se dedicado ao longo de sua história a viagens e partidas para outros mundos.

                                   Batem os carros d’aluguel, ao fundo,
                        Levando à via férrea os que vão. Felizes!
                        Ocorrem-me em revista exposições, países:
                        Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo,  o mundo!
            Na quarta estrofe, o eu poético faz com que os andaimes se assemelhem à gaiolas e os carpinteiros se parecem com morcegos, retratando novamente a relação entre o mundo conhecido e o mundo construído pelo poeta.
            O eu lírico do poema se depara com transformações, as quais revelam uma cidade escondida pela escuridão e que com o surgimento da iluminação provocam impressões novas e o levam a criar imagens diferentes voltadas para a realidade.
            Na quinta e sexta estrofes, percebe-se que o eu poético, atingido pela maresia evoca as crônicas navais e seus heróis e faz menção ao couraçado inglês, o qual representava o domínio estrangeiro sobre Portugal.
            Constata-se também um jogo de tempo e espaço, entre as primeiras horas da noite (Ave Maria) até a madrugada (Horas Mortas), mostrando as transformações por que passa a cidade em diferentes momentos da noite.
            Cesário Verde trabalha com tipos característicos da cidade e principalmente com o universo feminino, revelando sua posição e situação na época. Em “Ave Maria” tem-se as mulheres trabalhadoras que as seis horas vão para casa como muitas outras.
“...Reluz viscoso, o rio, apressam-se as obreiras, E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas”. Conhece-se também em “Noite Fechada”, as costureiras e floristas, mulheres que ficavam na varanda conversando:
                                   E mais: as costureiras, as floristas
                        Descem dos magasins, causam-me sobressaltos,
                        Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
                        E muitas delas são comparsas ou coristas.
Na terceira estrofe de “Ao gás”, o autor retrata as burguesinhas do Catolicismo, aquelas que rezam, jejuam, fazem penitências quando as luzes se acendem.
                                   As burguesinhas do Catolicismo
                        Resvalam pelo chão minado pelos canos;
                        E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
                        As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
E também aparecem as madames da sociedade, as quais até o surgimento da luz não eram vistas nas ruas durante a noite, e as retrata de maneira pouco simpática, pois para o eu lírico, estas mulheres eram cheias de luxos, porém sem conteúdo e nada verdadeiras.
                                   Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
                        Que espartilhada escolhe uns chales com debuxo!
                        Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
                        Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E finalmente, aparecem as prostituas em “Horas mortas”, as únicas a permanecerem na rua até de madrugada, sujeitando-se a todo tipo de situação ameaçadora.
                                   E nestes nebulosos corredores
                        Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas,
                        Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
                        Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
            Em “Noite Fechada” tem-se o primeiro momento da iluminação em que as sensações internas do eu poético  ‘Tão mórbido me sinto,...’ se contrapõe ao mundo externo ‘ao acender das luzes’ , segunda estrofe, revelando um estado de espírito negativo, o qual muda na estrofe seguinte, pois o eu lírico parece colorir “andares, tascas, cafés, tendas e estancas”, mostrando uma visão mais positiva da realidade.
            Os versos finais de “Noite Fechada” revelam um momento de introspecção do eu lírico , pois mesmo deparando-se com imagens novas, pessoas e situações, constata sua solidão.
                                   E eu, de luneta de uma lente só,
                        Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
                        Entro na brasserie; as mesas de emigrados,
                        Ao riso e à crua luz joga-se dominó.
            A terceira parte do poema, “Ao gás” retrata o momento em que a luz que vem do gás se torna necessária para que o comércio continue aberto, para que as damas da sociedade façam suas compras e que a miséria seja revelada tal como ela é, através de prostitutas e mendigos.
            Cesário Verde descreve ainda as sensações  que a cidade desperta no eu lírico, como o olfato “E de uma padaria exala-se, inda quente/Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.”, o tato, “Desdobram-se tecidos estrangeiros” e a visão, “Plantas ornamentais secam nos mostradores:”
            A metalinguagem também está presente no poema de Cesário Verde, como na quinta estrofe:
                                   E eu que medito um livro que exacerbe,
                        Quisera que o real e a análise mo dessem...”
            Em “Horas Mortas”,  é madrugada e estão nas ruas somente os boêmios, os soldados e as prostitutas, e ainda assim o poeta se permite sonhar. Ele sonha com a volta do poder de Portugal e a vontade incontida do povo português de conquistar novos mundos.
                                   Ah! Como a raça ruiva do porvir,
                        E as frotas dos avós, e os nômades ardentes,
                        Nós vamos explorar todos os continentes
                        E pelas vastidões aquáticas seguir!
            Porém isto dura apenas um momento, pois logo em seguida o eu lírico se volta para a realidade de uma cidade que é ao mesmo tempo prisão, hospital e cemitério, com se verifica na sétima estrofe:
                                   Mas se vivemos, os emparedados,
                        Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
                        Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
                        E os gritos de socorro ouvir estrangulados.
            “O Sentimento dum ocidental” mostra um poeta espantado e prisioneiro de uma cidade moderna, criador de uma variedade de tipos humanos prontos a brilhar em meio a cores sóbrias das ruas. O eu lírico deslumbrase com aquilo que o faz sofrer, mas se revolta com a miséria e a degradação social, resultado da revolução industrial.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985.
VERDE, Cesário. (2001)  “O sentimento dum ocidental”. In: Poesia Completa, 1855-1866. Lisboa: Dom Quixote.





domingo, 13 de fevereiro de 2011

CHAPEUZINHO VERMELHO: UMA LEITURA HISTÓRICA E PSICANALÍTICA

           
Paraguassu de Fátima Rocha

Para proceder a análise do conto infantil Chapeuzinho Vermelho foram revistas noções sobre a psicanálise, enfatizando-se o conceito de psique (alma), entendida pelos psicólogos norte-americanos como personalidade. A personalidade está ligada à relação que se estabelece entre um “eu” e outros “eus”, distinguindo-se a interioridade psíquica que se manifesta pela ação da linguagem, sendo que é através dessa que se tem acesso à personalidade.  No estudo da psicanálise também estão presentes as metáforas da verticalidade que implicam em transpor o nível da aparência para atingir a essência.
A abordagem psicanalítica está baseada nos conceitos de Freud que desenvolveu o conceito de inconsciente, o qual compreende o id, o ego e o superego. O primeiro representa o primitivismo do pensamento e constitui o reservatório dos instintos básicos do ser humano (homicídio, canibalismo, incesto). O ego atua como moderador e busca o equilíbrio entre os instintos básicos e os princípios éticos e morais e corresponde ao estado da consciência. Já o superego canaliza os atos para algo socialmente aceito e busca um substituto para o desejo reprimido. Freud considera também que o ser humano sublima sua verdadeira essência e defende o estágio fálico no processo de desenvolvimento psicossexual.
Dentre os estudiosos da psicanálise destaca-se também Lacan que considera que o inconsciente se estrutura como linguagem.
Na interpretação histórica e psicanalítica de Chapeuzinho Vermelho, encontram-se inúmeras versões. Na versão clássica, a discussão gira em torno da psicanálise e relaciona metaforicamente a desejo do lobo em comer tanto a avó quanto a menina. Já na versão moderna, apresentada no filme de Cory Edwards, Deu a louca na chapeuzinho (2005), que adota o enredo da história original, com os mesmos personagens, o enfoque é dado ao roubo de receitas e ao preconceito, uma vez que o lobo continua aparentemente sendo mau, caracterizando a metáfora da verticalidade.  O filme apresenta também a mudança de tabu, uma vez que no enredo original discutia-se a sexualidade e a concepção que antigamente eram tratada metaforicamente. Na atualidade, o tabu passou a ser a morte, e dessa forma excluem-se elementos que caracterizam a violência da historia.
Na interpretação literária, o filme apresenta um deslocamento do foco narrativo, mostrando quatro versões diferentes sobre o mesmo fato, além de utilizar o enredo comum às histórias do século XIV, em que o narrador (sapo) percorre o caminho inverso ao do historiador em busca das evidências que apontem o culpado pelo roubo. O investigador parte do presente para chegar ao passado. O filme apresenta também contradições e a introdução de elementos desnecessários (esquilo, coelho, bode). Entretanto, o coelho torna-se um elemento fundamental por se caracterizar como o verdadeiro vilão da história.
Outro aspecto ressaltado no filme é a geração de um paradoxo e consequentemente do humor, representado pelas atitudes modernas da avó de Chapeuzinho. A narrativa fílmica  assemelha-se  ao romance moderno, pois tenta chegar numa explicação próxima da realidade, diferentemente dos contos de fadas que tem como objetivo a lição de moral.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A ESTRUTURA TRÁGICA DE MACBETH




1.      EXPOSIÇÃO:  Ato 1, cenas I, II e III.
2.      INTENSIFICAÇÃO: Ato 1, cenas I, II, III e IV.
3.      CRISE: Ato 3, cena IV.
4.      DECLÍNIO: Ato 4, cenas I, II e III
5.      DESFECHO: Ato 5, cenas VII


1.      Exposição.

Por volta de 1606, Shakespeare escreve sua tragédia mais contundente, na qual o seu herói Macbeth, além da luta pelo poder, trava uma luta interna, envolvido por constantes crises de consciência que não o impedem de assassinar Duncan, rei da Escócia, e todos aqueles que podem impedi-lo de atingir seus objetivos.
-         ação antecedente ou pregressa: A vitória de Macbeth sobre o Barão de Cawdor na sangrenta batalha de Fife. “... o Barão de Cawdor, deu início a um conflito desolador, até que Macbeth (...), chegou em sua armadura, confrontou-o e provou ser um homem de valor...” (I, II).
-         Incidente que desencadeia a ação: O encontro de Macbeth com as três bruxas que o saúdam como futuro rei da Escócia. É nesse momento que vêm à tona as ambições secretas de Macbeth.
-         Introdução dos oponentes trágicos: Macbeth X Duncan.
-         Missão de Macbeth: tornar-se rei da Escócia.
-         Reconhecimento: Macbeth assume o seu interesse real pelo trono da Escócia no momento em que Duncan nomeia seu filho Malcolm como seu futuro sucessor. Macbeth pensa: “Príncipe de Cumberland! Este é um degrau que devo galgar; do contrário, tropeço, pois ele se encontra no meu caminho.” (1, IV)
    

2.      Intensificação.

Macbeth, embora envolvido em suas crises de consciência, toma a decisão de matar Duncan, contando com o apoio de Lady Macbeth, que por seu caráter também ambicioso não o demove de sua intenção.

3.      Crise.

Após o assassinato de Duncan, o que representa a tomada do poder à força, Macbeth dá continuidade a seus planos de ser o único soberano na Escócia. Desta forma, decide eliminar Banquo, que segundo o vaticínio das bruxas teria seus filhos feitos reis. A morte de seu oponente moral intensifica os delírios de Macbeth levando-o a ver o fantasma de Banquo durante o banquete em sua homenagem, criando um clima de suspense. “Eu te suplico, olha ali. Vê, olha, enxerga! – O que me dizes? – Mas também, o que me importa? – Se consegues acenar com a cabeça, podes falar. Fala! – Se nossas sepulturas precisam nos mandar de volta aqueles que enterramos (...) (3, IV)
-         Reviravolta: Os crimes de Macbeth passam a ser desvendados pelos membros da corte.
    
4.      Declínio.

A seqüência de assassinatos, representados pela morte de dos filhos e da esposa de Macduff.
     

5.      Desfecho.

A morte de Lady Macbeth, o que não causa nenhum sofrimento a Macbeth, tão envolvido estava na sua ambição “Ela teria de morrer, mais cedo ou mais tarde. Morta. (...) A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz.”
-         duelo final entre Macbeth e Macduff.
-         Clímax: a revelação de Macduff sobre o seu nascimento. “Do ventre de sua mãe Macduff foi arrancado à força, antes do tempo”
-         Catástrofe: morte de Macbeth.
-         Restabelecimento da ordem: proclamação de Malcolm como rei.








POESIA E PROFECIA: VISÕES DE PE. VIEIRA E FERNANDO PESSOA

             
Paraguassu de Fátima Rocha

Neste ensaio, baseado no texto “Pessoa e Vieira: dois profetas messiânicos” de José Augusto Seabra, procura-se estabelecer a relação entre a poesia e a profecia sebastianista, apontar as razões para o surgimento das profecias e explicar o porquê da associação entre Pe. Antonio Vieira e Fernando Pessoa

A RELAÇÃO ENTRE A POESIA E A PROFECIA SEBASTIANISTA

Para o crítico literário José Augusto Seabra no livro O heterotexto pessoano, essa relação se estabelece   através de uma revelação esotérica da escrita silenciosa do poeta e a voz ardente do profeta. A profecia seria, portanto, uma visão mensagem inteligível que cabe ao profeta interpretar e transmitir. Em contrapartida, a poesia é a visão dos acontecimentos na sua forma corpórea. Tanto  na profecia quanto na poesia, enfrentamos a mesma lógica, a da coexistência da verdade e da não verdade, o que para Fernando Pessoa representa o “fingimento”, sentimento esse expresso nos seus poemas “Autopsicografia” e “Isto”.

RAZÕES PARA O SURGIMENTO DOS PROFETAS E DAS PROFECIAS

Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz em O messianismo no Brasil e no mundo (1965), três condições são importantes para o surgimento do messianismo: a existência de uma comunidade oprimida, a esperança na vinda de um emissário divino que a liberte e a crença num paraíso, simultaneamente sagrado e profano.

A ASSOCIAÇÃO ENTRE PE. ANTÔNIO VIEIRA E FERNANDO PESSOA

Estabelece-se esta associação partindo das condições propostas por Maria Isaura. Tanto Vieira, o escritor barroco do século XVII quanto Pessoa, o poeta modernista do século XX, viveram situações semelhantes em suas épocas. Vieira enfrentou as crises religiosas, ideológicas e políticas que foram as questões entre o judaísmo e o cristianismo que irão desembocar no Sebastianismo restaurador – a crença no retorno de D. Sebastião. O Sebastianismo teve grande repercussão entre os jesuítas, e Vieira foi um dos principais divulgadores desse conceito.  Já Fernando Pessoa, que teve em Vieira um dos inspiradores centrais do seu profetismo poético, como pode-se observar no poema dedicado ao padre, parte integrante de Mensagem (1998),  baseado em fatos históricos como o Ultimatum inglês e que colocava Portugal diante de sua triste realidade – a desoladora decadência de uma nação outrora soberana. Esse livro, portanto, é fruto de pesquisa histórica e começou a ser escrito num momento do surgimento dos movimentos da Renascença e do Saudosismo (pensamento espiritualista e de forte impregnação sebastianista),  resultado da tentativa de reconstruir Portugal.

ANTONIO VIEIRA

O céu strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelando de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.


Outro fato que relaciona Pe. Antonio Vieira e Fernando Pessoa é que ambos comentaram em suas obras as trovas e os textos do poeta e trovador Gonçalo Annes Bandarra (séc. XVI), também conhecido como o sapateiro de Trancoso, o qual prenunciava a vinda de um rei que traria consigo um outro tempo “o tempo desejado”, tornando-se universal imperador.

TROVAS DE BANDARRA

Este Rei tem tal nobreza
Qual eu nunca vi em Rei:
Este guarda bem a lei
Da justiça e da grandeza
...........................................
Serão os Reis concorrentes
Quatro serão, e não mais;
Todos quatro principaes
Do Levante ao Poente.
Os outros Reis mui contentes
De o verem Imperador
E havido por Senhor...

Vieira, em “Esperanças de Portugal”, comenta sobre Bandarra: “A este universal conhecimento de Cristo diz Bandarra que sucederá, por coroa de tudo, a paz universal do Mundo, tão cantada e prometida por todos os profetas, debaixo de um só pastor e de um só monarca.” Fernando Pessoa no poema intitulado “O Bandarra” diz:
“Sonhava anônimo e disperso,/O império por Deus mesmo visto,/Confuso como o Universo/E plebeu como Jesus Cristo./.../”
            Ambos referem-se a D. Sebastião, e Vieira acentua o pacifismo ecumênico das trovas ao comentá-las,  enquanto Pessoa tenta traduzir a sua mensagem de universalidade.
            O livro Mensagem de Fernando Pessoa, embora seja um poema épico, difere dos demais por focalizar-se no futuro e não no passado, ele se concentra no que está por vir, ou seja, o poeta encara os acontecimentos do passado como sinais misteriosos, que devem ser decifrados a fim de antever neles o que ainda está por acontecer.
            Assim como os profetas tentam transmitir para os não iniciados os códigos simbólicos do esoterismo, Fernando Pessoa tenta desvendar a linguagem cifrada da História. Por isso, Pessoa começa falando do “futuro do passado” e menciona depois “o som do presente desse mar futuro.” Seus poemas parecem criar um clima de magia em torno de presságios e adivinhações, sugerindo que algo grandioso está por acontecer. Quando? “Não sei a hora, mas sei que há a hora.”

REFERÊNCIAS
MOISES, Carlos Felipe. Roteiro de leitura: mensagem de Fernando Pessoa: ROT. Sao Paulo: Ática, 1996.
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. Belo Horizonte: Dominus, 1965.
SEABRA, Jose Augusto (Org.). O heterotexto pessoano. Sao Paulo: Perspectiva, 1988.