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domingo, 30 de janeiro de 2011

O CONTADOR DE HISTÓRIAS: AIRES OU MACHADO?

Paraguassu de Fátima Rocha

 
Em uma estação, espera-se pelo trem que chega às sete horas da manhã e sai em seguida. Iniciada a viagem, um cavalheiro, por volta de uns sessenta anos, senta-se e respeitosamente começa uma conversa. Quando se percebe, esse senhor está relatando fatos pertinentes à sua vida ou de outros próximos como quem conta histórias de reis, rainhas ou aventuras além mar. Esse é o primeiro impacto causado ao ler-se Memorial de Aires de Machado de Assis.
              E é através de uma narrativa lenta e desprovida de ação e suspense que o autor relata, por intermédio do Conselheiro Aires, no seu último romance, temas relacionados ao envelhecimento, tais como a solidão e a morte. Entretanto, essas características no romance em nada afetam a qualidade de sua obra, ao contrário, é nas páginas do diário de um  homem viúvo, aposentado e sem filhos que surgem personagens e episódios que vão preenchendo a sua solidão.      
              Machado não poderia ter escolhido um tema mais real para encerrar a sua carreira de escritor, tendo em vista que o romance é analisado por muitos críticos como uma autobiografia mascarada do autor, funcionando como um esquema psicológico, no qual são reproduzidas de forma fiel as mais intimas situações e sensações das entranhas de um senhor, cuja principal companhia é o tédio. Nesse sentido, não é difícil estabelecer coincidências com a vida do autor, como, por exemplo, a idade em que se encontrava, a criação da personagem D. Carmo, que muito lembra D. Carolina, e o relacionamento daquela  com o marido.
             Contudo, a verossimilhança do seu romance não se caracteriza por essas coincidências, mas pela relação causa-consequência verificada ao longo da história. É a partir de uma visita do conselheiro Aires e sua irmã Rita ao cemitério que ocorre uma sucessão de fatos, os quais acompanharão toda a narrativa. Nessa visita, Aires vê a viúva Fidélia e, encantado com a figura da jovem, começa a se interessar por sua vida. Ainda no mesmo dia tem notícias do casal de amigos que conhecera em sua última visita ao Rio de Janeiro, os Aguiares, que surpreendentemente são amigos de Rita e de Fidélia. A aproximação de ambos ocorre na comemoração das bodas de prata do casal Aguiar.
              É nesse clima de comemorações, visitas a casas de amigos, encontros casuais em suas andanças pela cidade ou conversas com antigos conhecidos que as personagens vêm participar do cotidiano do conselheiro e preencher as páginas do seu diário, lembrando que a existência de agendas e diários se faz necessária pelo fato do ser humano conviver com o real esquecimento. E, as mesmas anotações que existem para relembrar, como um flashback, existem também para deixar bem claro que tudo aquilo que passou requer renovação.
              A organização lógica dos fatos dentro do enredo, desencadeando novos fatos, é um dos recursos adotados por Machado para dar verossimilhança ao seu romance. Em uma de suas anotações, datada de 14 de julho de 1988, a personagem relata a possibilidade da reconciliação entre Fidélia e seu pai, do qual encontrava-se afastada desde que decidira casar com o filho de um inimigo político. Devido à doença do pai, Fidélia parte para a fazenda com o tio. O personagem escreve: “Não é fácil adivinhar o que vai sair daqui, mas não será fácil compor uma invenção que não acontecesse. [...]. Melhor é dizer que a reconciliação parece fazer-se mais depressa do que esperavam [...]”. Nesse sentido, pode-se afirmar que Machado de Assis não se limitava a copiar a vida, porém, através de sua imaginação, transformar a realidade.
              Outro fator que contribui para a verossimilhança no romance Memorial de Aires é a sequência temporal, estabelecida ali através do estilo adotado pelo autor, a forma de diário, a qual causa uma certa estranheza no inicio, porém provoca uma interação muito maior com o leitor, pois esse sente-se transportado para os anos de 1888/1889. É fácil para o leitor sentir-se como o amigo mais íntimo do conselheiro Aires, tendo-se a nítida impressão que Aires chama quem o lê para uma parte retirada qualquer, para segredar o que tem acontecido na vida daqueles que têm contato com ele.  Têm-se ainda, a introdução de fatos históricos, como, por exemplo, a abolição dos escravos.
             Além do discurso direto, Machado utiliza o discurso indireto em quase toda a narrativa, estabelecendo assim um monólogo psicológico, algumas vezes se justificando por não haver mencionado algum fato, outras se recriminando pelo excesso cometido em algum comentário. No entanto, em meio as suas manifestações interiores, procura colocar o leitor diante da fala real das personagens, introduzindo diálogos, que mesmo curtos traduzem o pensamento destes.
              Contra aqueles que podiam considerar seu romance inverossímel, Machado se defende ao escrever sobre a coincidência do motivo da partida de Osório, um dos pretendentes de Fidélia. Ambos tinham os pais adoentados. “Há na vida simetrias inesperadas. A moléstia do pai de Osório chamou o filho ao Recife, a do pai de Fidélia [...] à Paraíba do Sul. Se isto fosse novela algum crítico tacharia de inverossímel o acordo dos fatos, mas já dizia o poeta que a verdade pode ser às vezes inverossímel”.
              Abordar temas como a velhice e a morte poderia passar ao leitor um tom cinza de tristeza e melancolia, principalmente na época em que foi escrito, pois então era como se o sentido da vida acabasse quando se atingisse uma certa idade. Machado, no entanto, habilmente pincela seu romance com um colorido especial, representado pela ternura e tenacidade de D. Carmo, que mesmo não tendo filhos, encontra em Fidélia e Tristão a sua realização como mãe; a vivacidade de Tristão, envolvido com a beleza de sua terra natal e os interesses políticos em Portugal; a juventude de Fidelia, que, embora, viva a viuvez da alma, é capaz de sutilmente demonstrar um pouco de alegria, ou num simples encontro com um grupo de crianças, que levam o conselheiro sentir-se realmente alegre.
               Há ainda que se ressaltar a interligação entre Memorial de Aires (1904) e Esaú e Jacó (1908), devido à presença do Conselheiro Aires, um observador das sutilezas da psicologia humana. Aires, com seu manuscrito a ser publicado depois de sua morte, constrói um monumento elogioso à sua memória (algo como uma propaganda para “vender o próprio peixe”) tal como se esperaria de um memorial, sendo a ligação, o criador de personagens de ficção e relator do diário de dois anos de sua vida.
Memorial é um livro que prende a atenção do início ao fim, pelo caráter pessoal que apresenta, trazendo o leitor para dentro da história e fazendo-o participar dos acontecimentos descritos. A genialidade machadiana prevalece.

REFERÊNCIAS.
ASSIS, Machado. Memorial de Aires. São Paulo: Conduta, 19..



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