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quinta-feira, 17 de agosto de 2017


DO FÓLIO AO HYPERLINK: INTERTEXTUALIDADE, INTERMIDIALIDADE E

RECEPÇÃO EM SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO DE WILLIAM SHAKESPEARE







 
Foi-se o tempo em que obras de arte eram contempladas na plataforma para a qual
foram produzidas. Os livros, por exemplo, que estavam destinados às prateleiras de
bibliotecas ou de livrarias, devido ao processo de reprodutividade, passaram a ser exibidos
em diferentes meios com o advento da tecnologia. O espaço midiático da internet
contribuiu para que a informação e o conhecimento deixassem, então, o seu lugar de
origem e passassem a fazer parte de um universo coletivo, ou, conforme salienta Nanci
Gonçalves Nobre:
[...] a hipótese de que leitura e informação [...] podem configurar-se como
territórios de (re)significação para os sujeitos sociais, na medida em que,
servindo-lhes tanto como possibilidade de apropriação e produção, quanto
de compartilhamento de saberes, oportunizam a constituição de
singularidades. [...] Sendo assim, as práticas leitoras e informacionais de
apropriação de conhecimento das variadas comunidades atendidas pelas
unidades de informação modificam-se e produzem sentidos que
desembocarão em outros textos, e outros, num processo infinito de
releituras, numa polifonia de vozes e reflexos. (NÓBREGA, 2009, p. 97)

Dessa forma, tem-se, hoje, acesso aos grandes clássicos da literatura em um simples

clicar no mouse. A obra Shakespiriana é um excelente exemplo disso. Inúmeros sites,
blogs ou páginas de comunidades sociais dedicam-se a fornecer material de pesquisa ou
divulgar os textos do autor, seja através de arquivos em pdf, posts, imagens, clipes, teses,


dissertações, artigos, resenhas, ou ainda, as bibliotecas virtuais que disponibilizam suas

peças no ambiente virtual. Ao pesquisar no site de buscas Google a comédia Sonho de uma
noite de verão, objeto do presente estudo, obtem-se aproximadamente 352.000 resultados
para essa pesquisa, sem relacionar os hyperlinks que surgem em cada uma das páginas


abertas. O mesmo ocorre com a adaptação em quadrinhos da peça de Shakespeare feita por

Neil Gaiman para a revista Sandman, cuja busca apresenta 1.420.000 resultados.


Confirma-se, assim, o pensamento de Nanci Gonçalves de que as unidades de
informação modificam-se e produzem sentidos diversos, consolidando um processo
infinito de releituras.
Shakespeare: do fólio ao hyperlink


A primeira edição do fólio de William Shakespeare, Comedies, Histories &
Tragedies que reúne 36 de seus trabalhos, data de 1623. Calcula-se que foram editadas


entre 750 e 1200 cópias as quais foram parar em mãos de colecionadores ou encontram-se
em bibliotecas espalhadas ao redor do mundo, restando, na atualidade, aproximadamente
238 cópias. Se considerarmos que o interesse na pesquisa dos textos originais é grande,
esse número torna-se insuficiente e ainda requer visitas às bibliotecas que detêm a obra do
autor para realização de pesquisas. Entretanto, essas barreiras são superadas com os
materiais disponíveis na mídia eletrônica. Um exemplo disso é a digitalização do primeiro

fólio, incluindo a peça aqui discutida (figuras 1 e 2) feito pela Folger Shakespeare Library,


que tem como missão preservar e divulgar a obra do bardo, tornando-a, em formatos
adequados, acessível a pesquisadores.

Fig. 1. Capa e introdução do Primeiro Fólio1
Fig. 2: Página de Sonho de uma noite de verão
Da mesma forma que a Folger disponibiliza este material, outras páginas também
divulgam a obra Shakespiriana, fornecendo, através de hyperlinks2 elementos necessários para o
1 Disponível em http://shakespeare.folger.edu/other/folio/ShaF1B.pdf
avanço das pesquisas. Nesse caso, apresenta-se como exemplo a página Mr. William Shakespeare
and the Internet3 (figura 3) que atua como guia para pesquisas.
The truly un-scholarly sites are linked on the "Other" Sites page.


AShakespeare Timeline

A Shakespeare genealogy.




A Shakespeare Timeline Summary Chart



Fig. 3: Página adaptada mostrando os hyperlinks em azul.


Adaptações de Sonhos de uma noite de verão
O texto de William Shakespeare mereceu ao longo dos séculos diferentes
representações, sejam elas espetaculares, cinematográficas ou, recentemente, no formato
de mangás (figura 4) ou histórias em quadrinhos (figura 5), objeto da presente análise.
Fig. 4: Manga


2 Um elemento em um documento eletrônico que direciona para um documento diferente no mesmo espaço



do documento original.


3 Disponível em shakespeare.palomar/edu
Fig. 5: História em quadrinhos publicada na revista Sandman.
Sonho de uma noite de verão escrita por Neil Gaiman, desenhada e colorida por


Charles Vess e Steve Oliff, respectivamente, trata-se de uma adaptação da obra do bardo
em que Gaiman mescla elementos relacionados à vida e à peça de Shakespeare. Publicada

na revista Sandman4 em 1990, foi o primeiro texto gráfico a ser agraciado com o World
Fantasy Award em 1991.


Em linhas gerais, a história de Gaiman relata o encontro entre Sonho e a
personagem Shakespear, o qual havia prometido escrever duas peças ao senhor dos sonhos
se tivesse sucesso como escritor. O prólogo consiste da trajetória de Shakespeare e a
representação de suas peças em diferentes lugares. Além do escritor também estão
representados seu filho Hamnet, Richard Burbage, chefe da companhia e os artesãos
(figura 6).

4 Sandman é uma revista de história em quadrinhos criada por Neil Gaiman em 1988. Suas histórias



descrevem a vida de Sonho, o governante do Sonhar (o mundo dos sonhos) e sua interação com o universo,
os homens e outras criaturas. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Sandman_revista em quadrinhos

Fig. 6: Prólogo

Na sequência, mesclam-se a representação da fantasia e dos atores. A primeira traz
Auberon, Lady Titânia, Robin, Lysander, Hermia e Helena; na segunda, tem-se Will
Kemp, Henry Condell, Hippolyta, Philostrate e Puck, dentre outras personagens da peça
em questão (figura 8). A transposição entre esses dois mundos vem representada por um
portal em que apenas se delineiam as figuras das personagens na sua travessia para o
centro da fantasia. (figura 9).
Fig. 8: Transposição.
Fig. 9: Mundo da fantasia

O que se evidencia na narrativa de Gaiman é o texto de Shakespeare demonstrado
na fala das personagens, ali disposto de acordo com a plataforma da história em
quadrinhos, e também o fato de que as personagens representam em seus sonhos, pois o
Senhor dos sonhos os faz adormecer para se apresentarem no mundo da fantasia.
O universo da história em quadrinhos: intermedialidade e intertextualidade

O contexto das histórias em quadrinhos refere-se à relação entre texto verbal, texto
visual e sequência, ou conforme assevera Will Eisner:
A configuração geral da revista em quadrinhos apresenta uma sobreposição
de palavra e imagem, e assim, é preciso que o leitor exerça suas
habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências do desenho (por
exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da Literatura (por
exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura
da revista em quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço
intelectual. (EISNER, 1999 )

No trabalho de Gaiman o que predomina é a imagem, uma vez que os diálogos
estabelecidos entre as personagens são curtos e próximos à realidade atual do leitor de
histórias em quadrinhos. Leonora Soledad Souza e Paula (2006, p. 299) observa que “a
convivência da nova história em quadrinhos com outras produções culturais se constrói a
partir de um criativo processo de ressignifição de recursos empregados anteriormente.”, e
ainda, segundo ela, “a transformação desse material atua como recodificação dos signos
anteriores em novos elementos de criação utilizados num processo de construção e um
novo código que, por definição, é constituído de várias camadas”.
Os estudos de Irina Rajewski (2005, p. 9-10) sobre a intermidialidade, em

Intermidality, intertextuality and remedeation: a literary perspective on intermediality,


conduzem a três subcategorias. A primeira trata da transposição midiática, ou seja, da
criação de um novo produto de mídia a partir do texto fonte, como, por exemplo, a
adaptação cinematográfica de um texto literário; a segunda está relacionada à combinação
de mídias distintas, como ópera, filme, teatro, manuscritos, instalações em computador ou
de arte sonora, etc, fenômeno esse também conhecido como configurações multimídias,
mixmídias e intermídias. Nesse contexto, segundo Irina, as formas midiáticas estão
presentes em sua própria materialidade e contribuem nas suas especificidade para a
construção do sentido do novo produto; e, em terceiro, as referências intermidiáticas que
consistem na referência de um produto anterior no meio atual que pode ser a referência de
um filme em um livro, de uma pintura ou fotografia em um livro, a musicalização da
literatura, entre outros. O que deve ficar claro é que as mídias utilizadas apenas evocam,
tematizam ou imitam elementos de outras mídias através de seus recursos específicos.
Claus Clüver também estabelece uma diferenciação entre os textos multimídias,
mixmídias e intermídias. Para ele, os textos multimídias compreendem a combinação de
textos compostos em mídias distintas, os quais podem ser separados sem perderem sua
coerência; textos mixmídias, ao contrário, por conterem signos complexos em mídias
diferentes, ao serem separados não alcançariam coerência ou autossuficiência. Com relação
aos textos intersemióticos ou intermídias, Clüver salienta que esses recorrem a dois ou
mais sistemas signícos e/ou mídias de tal forma que seus signos se tornam inseparáveis.
Das considerações teóricas acima apresentadas, esta análise baseou-se nos
pressupostos de Irina sobre a combinação de mídias distintas e Clüver sobre os textos
mixmídia, pois os quadrinhos constituem-se de textos mistos (imagem visual e imagem
verbal). Tais elementos são combinados e relacionam-se, em seus diferentes códigos para,
neste caso, recontarem a peça de Shakespeare.
No âmbito da intertextualidade, percebe-se o que Gerard Genette denomina de
hipertextualidade, pois é visível no texto verbal a presença do texto shakespiriano através
da fala das personagens (figura 10).

Fig. 10: Diálogo entre Teseu e Hippolyta5
5 “Depressa, bela Hipolita, aproxima-se a hora de nossas núpcias. Quatro dias felizes nos trarão uma outra



lua” (SHAKESPEARE, p. 15)

Nesta abordagem, o que se evidencia é que composição de palavras e imagens na

adaptação de Sonho de uma noite de verão de Neil Gaiman desenvolve uma nova visão


sobre o trabalho do bardo, transpondo o universo dos clássicos para uma linguagem sígnica
atual. Mesclam-se elementos das histórias em quadrinhos e linguagem virtual produzida na
mídia eletrônica em que as possibilidades de construção de sentido são infinitas e
promissoras para a pesquisa e preservação de um clássico tão popular como William
Shakespeare.
Referências


CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e sociedade.


São Paulo: FFLCH/USP, n. 2, 1997.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo:


Martins Fontes, 1999.

GAIMAN, Neil. A midsummer night´s dream. In: Dream Country, Sandman. vol. 19,


1990.

GENETTE, Gérad. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982.


NÓBREGA, Nanci Gonçalves da. De livros e bibliotecas como memória do mundo:

dinamização de acervos. In: YUNES, Eliana (org). Pensar a leitura: complexidade. Rio de


Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2009.
PAULA, Leonora Soledad Souza e. Filosofia em quadrinhos: uma análise intermidiática de

Salut Deleuze! Revista Aletria, Minas Gerais, v. 14, p. 297-308, 2006.
RAJEWSKI, Irina O. Intermidality, intertextuality and remedeation: a literary


perspective on intermediality. Tradução Thaiz Flores Diniz. 2005, p. 9-10.

SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. São Paulo: Ediouro, 1990.