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domingo, 13 de março de 2011

OS ELEMENTOS DO FANTÁSTICO EM “COMO OS PÁSSAROS DESPERTAM O SOL”, DE ALISTAIR MAC LEOD

       Paraguassu de Fátima Rocha

Este ensaio pretende apresentar as discussões em torno do gênero fantástico, buscando aporte nas considerações de H.P. Lovecraft (1973) e Tzvetan Todorov (1979, 2004), Luiz Gonzaga Motta (2006), Joel Malrieu (1992) e Gilles Deleuze (1995), os quais traçam alternativas possíveis para a leitura de textos literários que abordem esse tema, e a partir delas analisar o conto “Como os pássaros despertam o sol” do escritor canadense Alistair Mac Leod, o qual faz parte do livro Contos dos Anos 80 e 90 traduzidos do inglês.
Lovecraft deu ênfase ao agrupamento dos temas que se repetiam em narrativas de cunho fantástico ou sobrenatural. Para ele,

uma estória fantástica que pretenda ensinar ou produzir um efeito social, ou na qual o horror é explicado por meio de regras naturais, não é um conto genuinamente de grande medo, mas permanece como o fato que tais narrativas freqüentemente possuem, em partes isoladas, toques de atmosfera que preenchem toda a condição da literatura de horror sobrenatural.” (Lovecraft 1979:16)


O autor relaciona ainda a emoção como principal fator para que se produza o efeito numa história sobrenatural, afirmando que “devemos julgar uma história sobrenatural não pelas intenções do autor ou pela simples mecânica do enredo, mas pelo nível emocional que ela atinge no seu ponto mais insólito.” (Lovecraft 1979:16)
Já, para Todorov o efeito da história fantástica é produzido pela hesitação. Todorov define o fantástico como “a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento sobrenatural” entendendo que a “possibilidade de hesitar entre tipos natural e sobrenatural criou o efeito fantástico” (Todorov 2004:31).
Aliam-se aos conceitos formulados por  Lovecraft e Todorov  as considerações de Motta (2006), para quem o fantástico é “[...] uma manifestação de algo irreal, estranho que não pertence ao mundo familiar.” (Motta 2006:57)
Há ainda que se considerar o ponto de vista de Iser ao analisar a inter-relação que se estabelece entre autor, leitor e texto para que se concretizem os efeitos acima propostos. O autor declara que “[...] o jogo do texto é, portanto, uma performance para um suposto auditório, e como tal, não é idêntico ao jogo cumprido na vida comum, mas na verdade um jogo que se encena para o leitor, a quem é dado um papel que o habilita a realizar o cenário apresentado.” (Iser 1979:107)
Na esteira dos autores acima citados, incluem-se também as formulações propostas por Malrieu (1992:91) que classifica as personagens do gênero fantástico como fenômenos e que como tais seriam inomináveis “O fenômeno não pertence à ordem de seres identificáveis, ele é a “coisa” inominável, indescritível”, e de Deleuze (1995) para quem esse fenômeno viria ao encontro da personagem.
Observadas as ideias acima, passa-se a análise do conto “Como os pássaros despertam o sol” o qual narra a saga de uma família que se vê diante de acontecimentos inexplicáveis marcados pela tragédia,  e que se iniciam quando essa encontra uma cachorra, ainda filhote, no portão de sua casa.
Adotando a técnica do fluxo de consciência, o autor apresenta através de um narrador onisciente, vários elementos do conto fantástico para narrar a saga que acompanha a sua família por gerações. E é através dos mecanismos da memória involuntária descrita por Beckett (2003:33) na obra Em Busca do Tempo Perdido, como aquela cujas lembranças espontâneas e autênticas são recuperadas através de estímulos sensoriais, que podem ser olfativos, táteis, sonoros ou visuais que o narrador introduz no conto os acontecimentos ocorridos em vários momentos do passado e que se intensificam no presente, além das personagens que compõem a lenda.  No conto de Mac Leod, o narrador tem esse mecanismo acionado pelo estímulo visual ao olhar para seu pai doente e imaginar que ele pode ser vitimado pelo espectro da cachorra,  relatando:

Estou pensando nisso tudo agora enquanto a chuva de outubro cai sobre a cidade de Toronto e as enfermeiras simpáticas [...] entram e saem do quarto do meu pai. Ele está deitado [...] naquela posição hospitalar nem bem deitado, nem tampouco sentado. [...] e [...] sentados aqui, alternando às vezes o segurar das mãos do homem que nos deu a vida, estamos com medo por ele e por nós mesmos. Estamos com medo do que ele possa ver e estamos com medo de ouvir a frase nascida da visão. (Mac Leod 1985:110)


Dentre as lembranças do narrador que vão caracterizar o fantástico está aquela descrita por Deleuze, que defende a vinda do fenômeno ao encontro da personagem. O animal surge misteriosamente “[...] ninguém sabia de onde ela tinha vindo [...]” (Leod 1985:105). A personagem em questão é o seu dono que a criara com amor, cuidando dela com desvelo quando sofrera um acidente grave, do qual nenhum outro membro da família acreditava que ela se recuperaria. Entretanto, a cachorra sobrevivera para responder aos apelos da natureza e dar a luz aos seus seis filhotes para em seguida desaparecer misteriosamente, abandonando aquele homem que lhe dedicara tantos cuidados.
“Como os pássaros despertam o sol” é uma narrativa não linear  que vai ao encontro do conceito do fantástico contemporâneo ao partir do sobrenatural para então atingir o estado natural,  confirmado pelo emprego da expressão que inicia o conto “Era uma vez [...] (Leod 1985:105), retomando um passado mítico e imprimindo ao conto um caráter de fábula.  O estado natural é marcado pela afirmativa do narrador que volta ao tempo presente “Estou pensando nisso tudo agora [...]” (Leod 1985:109) e demonstra uma preocupação com relação ao futuro e como esse poderá afetar o destino de seu pai que se encontra doente “Iríamos fechar os olhos e cobrir as orelhas [...] os cabelos grisalhos eriçando-se em nossos pescoços se – e quando – ouvirmos o debate desordenado de patas e os arranhões na porta. (Leod, 1985:110) Essa relação entre passado, presente e futuro é abordada por Todorov (2004) para conceituar o fantástico, o qual o considera como “um tempo presente entre o passado e o futuro”
O acaso, descrito por Todorov (153-54) como o conjunto de premonições, reencontros insólitos e de coincidência estupefacientes que se manifestam na vida humana de tempos em tempos,  pontua o reencontro dos dois, quando o pai e os dois filhos pressentem uma tempestade e aportam numa ilha. A cachorra ao vê-lo repete o mesmo gesto de outrora “(...) ela veio ao seu encontro como costumava fazer, erguendo-se nas patas traseiras e colocando as enormes patas dianteiras em seus ombros, enquanto estirava a língua ansiosa.” (Leod 1985:107). No entanto, seus filhotes, já crescidos, interpretam a atitude da mãe como um ataque e pulam sobre o bondoso homem, matando-o, percebendo-se mais uma vez a interferência da natureza representada pelo instinto animal: “Caíram sobre ele furiosamente, retalhando seu rosto e dilacerando sua mandíbula  e arrancando seu pescoço, alucinados pela sede de sangue ou por dever ou talvez por fome.” E, embora a cachorra tenha repreendido seus filhotes,  tornou-se o símbolo da tragédia naquela família, pois sua aparição era associada à morte.
Esse acontecimento transforma a cachorra que nunca recebera um nome, sendo chamada apenas de  cù mòr glas (o grande cachorro cinzento) em cù mòr glas a’bhàis (o grande cachorro cinzento da morte), distinguindo-se, aqui, outra característica do fantástico apontada por Melrieu, para quem o fenômeno é inominável.
A partir de então, o animal passa a ser visto em vários lugares, estabelecendo-se assim um jogo entre o visível e o invisível  “Julgava, entretanto, que a cù mòr glas tinha sido avistada em certos lugares durante anos. [...] Sempre na área da meia percepção. [...] Vista, mas não registrada.” (Leod 1985:108), caminhando para o que Todorov (2004:31) classifica como característica do fantástico: a hesitação entre uma explicação natural e outra sobrenatural dos acontecimentos. Para ele, o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural, conforme declara o narrador, que se descobre ao longo do conto ser seu tetravô,  enquanto acompanha seu pai doente e teme pelos acontecimentos que seriam deflagrados com a reaparição do fenômeno, “[...] e estamos conscientes de que algumas crenças são o que outros desprezariam como “besteira”. Estamos conscientes de que há homens que acreditam que a terra é plana e que os pássaros despertam o sol.” (Leod 1985:110)  Fato é, segundo sugere o narrador, que os filhos daquele homem passaram a ser atormentados pelas recordações do que haviam visto e vieram também a morrer em decorrência da incerteza que se instaurou pela visão do fenômeno. Essa incerteza pode, segundo Todorov, marcar a finalização do conceito do fantástico, uma vez que explicações como o sonho, as drogas e a loucura, entre outros se encaixariam no rol das probabilidades, considerando-se que a alteração do estado de consciência pode provocar um desvio na concepção de um mundo realista.
Dos elementos acima descritos, o sonho vai influenciar na morte do filho mais jovem que costumava acordar à noite gritando que havia visto o fenômeno, e “Uma manhã, após uma noite na qual ele viu cù mòr glass a´bhais tão vividamente que seus lençóis estavam encharcados de suor, caminhou até um rochedo elevado [...] e lá degolou-se com uma faca de pescador e caiu no mar” (Leod 1985:108). As drogas também aparecem no conto como elemento de incerteza na caracterização do fantástico, uma vez que o outro irmão perdera sua vida numa briga de bar, “embriagado pelo whisky que tinha se tornado seu anestésico” (Leod 1985:109) ao ser mal interpretado por um dos frequentadores do local que o levou para o lado de fora “[...] onde, muito improvavelmente, haveria outros seis homens grandes e de cabelos grisalhos que o surraram até morrer [...] (Leod 1985:109) A referência aos seis homens grandes e de cabelos grisalhos sugere uma alegoria, pois remete aos filhotes de cù mòr glass que também eram grandes como a mãe e tinham o pelo cinza, imagem que é perpetrada também na figura do narrador e de seus cinco irmãos.
Outros elementos que determinam a linguagem do fantástico também são visíveis no conto de Mac Leod, distinguindo-se o discurso figurado, caracterizado ali pelo exagero na descrição da cachorra, que segundo o narrador “era grande e cinzenta, uma espécie de cão veadeiro de outras épocas” (Leod 1985:105); o uso de certas expressões como “era uma vez, assim diz a história, como diz a história, provocando  um distanciamento entre o natural e o imaginário; e o uso de verbos no imperfeito produzindo um efeito de imprecisão ao fato narrado.A questão do tempo e do espaço também constitui  fator determinante para o reconhecimento do fantástico no conta ora analisado.
Ocorre uma indeterminação do tempo, tendo em vista, conforme afirma Sigrid Renaux , a informação encontrada no conto de que a cachorra teria vindo de um tempo anterior ao “era uma vez” que remeteria a tempos “quase primordiais, nos quais existiam monstros e animais fabulosos” (Renaux 1995:153) o que se confirma pela comparação feita pelo narrador: “Por um tempo ela se tornou quase como o Monstro de Loch Ness ou de Sasquatch em escala menor.” (Leod 1985:108)
O espaço também se configura através da indeterminação, por estar ligado, ainda conforme Renaux (153), à atmosfera do conto, sugerindo mistério quando menciona que a família vivia perto do mar, e, ao referir-se aos locais onde a cachorra era vista, o narrador sempre o faz de forma imprecisa utilizando expressões como “aqui” e “ali”, “num topo de colina numa região”, entre outras.
O conto de Mac Leod evidencia a retomada ao passado para tentar compreender o momento de luta entre a vida e a morte porque passa o pai do narrador, sempre na expectativa de que os acontecimentos sobrenaturais que marcaram negativamente a vida de seus ancestrais possam suspender a luta empreendida pelo homem que lhe dera a vida. “Presos aqui em nossa mortalidade própria e peculiar, não queremos ver ou ver outros verem o que significa a extinção da vida. Não queremos ouvir a voz do nosso pai, como aqueles outros filhos, chamando sobre si mesmo a própria morte.” (Leod 1985:110)
Essa análise procurou relacionar alguns elementos do fantástico encontrados no conto em questão, sem a pretensão de ser definitiva, mas sim gerar abertura para outras interpretações.

REFERÊNCIAS

Beckett, Samuel. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac  & Naify, 2003
Deleuze, Gilles & Guattari, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
Iser, Wolfgang. “O jogo do texto”. In: Literatura e o Leitor: Textos de estética e recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

Lovecraft, H. P. Supernatural Horror in Literature. New York, Dover Publications, 1973.
Mac Leod. Alistar. “Como os pássaros despertam o sol”. In: Reichmann, Brunilda T (org.) Contos dos anos 80 e 90 traduzidos do inglês. Curitiba: Tecnodata, 2002.
Malrieu, Joel. Le Fantastique. Paris: Hachette, 1992.
Motta, Luiz Gonzaga. Notícias do Fantástico. São Leopoldo: Unisinos, 2006.
Reichmann, Brunilda T (org.) Contos dos anos 80 e 90 traduzidos do inglês. Curitiba: Tecnodata, 2002.
Renaux. Sigrid. “A função teleológica do Fantástico em Como os Pássaros Despertam o Sol”. In: Letras, Curitiba: Editora da UFPR, 1995.
Todorov, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979.
______________ . Introdução à Literatura Fantástica. Perspectiva, 2004.




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