Paraguassu de Fátima Rocha
Este
artigo insere-se nos estudos da literatura de autoria de minorias étnicas e
visa examinar o processo de construção da identidade do romance afro-brasileiro
através da leitura dos textos de Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo e
Ana Maria Gonçalves, destacando-se as diferentes vozes que emanam do romance e
são enunciadas tanto pelas autoras quanto pelas personagens. Considera-se,
também, no presente estudo, a questão da memória e sua relação com a
identidade.
Para
entender a construção de uma identidade literária afro-brasileira, é relevante
lembrar que o negro cativo, trazido da África, não serviu ao Brasil apenas como
mão de obra nas lavouras de café ou cana de açúcar, mas atuou também como
elemento disseminador de valores culturais da sua terra de origem. Tratar,
portanto, da Literatura Afro-Brasileira sem se voltar para os primeiros passos
dados no processo de aculturação do negro, que ocorre já na sua vinda para o
Brasil, é ver rompida uma linha que mostra a evolução dessa etnia numa nação
que ajudou a edificar.
O
País parece ter esquecido o que já defendia Joaquim Nabuco em suas campanhas
abolicionistas, ou seja, que a raça negra foi responsável pela viabilização de
um sonho do colonizador branco. Evidentemente, as marcas da escravidão e do
racismo impostas ao negro e perpetuadas ao longo dos séculos por uma sociedade
que não soube reconhecer suas contribuições continuam indeléveis, assim como as
tentativas de reparação desse erro histórico têm gerado discussões muitas vezes
contrárias à afirmação de um povo que quer apenas ser brasileiro e, como tal,
legitimar os seus direitos à cidadania.
A
presença do negro africano na história brasileira data de 1502 quando os
primeiros navios tumbeiros carregados de escravos aportaram em nossas terras.
Sua vinda, além dos aspectos econômicos favoráveis às nações europeias,
justificava-se pela necessidade de uma mão de obra mais qualificada para
desenvolver o trabalho nos engenhos e também para substituir o trabalho do
índio que não se mostrava eficaz na execução de determinadas tarefas.
Entretanto, o contingente de aproximadamente dois milhões de negros, arrancado
de diversos pontos da África e espalhado pelo solo brasileiro, não contribuiu
para o crescimento da nação apenas pela sua força bruta, uma vez que, trazendo
consigo seus conhecimentos, tradições e costumes, ajudou a definir o perfil de
uma sociedade que se quer branca, mas que reivindica para si a ancestralidade
da África quando isso pode lhe beneficiar, chamando-se de negro, mulato ou
pardo. Porém, independente das posições político-sociais que englobam também as
questões raciais, o negro tem mostrado imensa determinação em preservar seus
valores culturais, dentre os quais, a sua produção literária, seja recontando
sua história, ou buscando, através de alternativas diversas, fazer valer sua
identidade.
A
discussão que se instaura em torno da construção da identidade do descendente
africano encontra-se embasada no processo de transformação, de trocas e de
identificações. Para tratar da questão da identidade, faz-se necessário retomar
os pensamentos de Stuart Hall e Elisa Larkin do Nascimento. Hall (2001, p. 13)
defende que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas em torno de um “eu” coerente, identidades
contraditórias que proporcionam um deslocamento dos processos de identificação.
Já para Nascimento (2003, p. 31), a identidade representa a articulação de
referenciais que orientam a forma de agir e de mediar a relação do sujeito com
os outros, com o mundo e consigo mesmo e está relacionada com a experiência de
vida individual mesclada às representações da experiência coletiva de sua
comunidade e sociedade, aprendidas na sua interação com os outros.
Ao relacionar os pensamentos de Hall
e Nascimento, percebe-se que a identidade está diretamente ligada à memória na
construção da escrita afro-brasileira, uma vez que “A narrativa duma vida faz
parte de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada nas
histórias dos grupos a partir dos quais os indivíduos adquirem sua identidade”,
conforme salienta Jodelet (1994, p. 55) em seu artigo “Memorie che si evolvono”. Dessa forma, o escritor afro-brasileiro,
ao recontar seu passado de abusos, firma-se, ainda que à margem, como senhor de
uma história que só poderia ser contada de forma tão incidente por aqueles que
a viveram. Nesse contexto, cabe lembrar a posição da escritora e poeta negra,
Conceição Evaristo. Para ela,
Ao
se observar a resistência da tradição cultural negra e a sua reelaboração, a
sua reterritorialização no Brasil e em outros países, da diáspora africana,
percebemos o caráter pessoal e coletivo da memória como possibilitador de
construção de uma identidade. [...] A literatura afro-brasileira traz o
registro de uma memória social, enquanto lembranças de vários indivíduos.
Memória que permitiu um conhecimento de um sistema simbólico, que possibilitou
uma reorganização do território negro da diáspora, através de uma mística
negra, vivida em um tempo que escapa a uma mediação cronológica, por se tratar
de um tempo mítico (Evaristo, 2008, p. 6).
Esse posicionamento vai ao encontro
do que postula Maurice Halbawachs sobre a memória coletiva. Segundo o autor,
[...]
se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte
um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram,
enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam
uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para
cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto
de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o
lugar que eu ali ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que
mantenho com outros meios. Não é de admirar que do instrumento comum nem todos
aproveitem do mesmo modo. Todavia quando tentamos explicar essa diversidade,
voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza
social (halbwachs, 1990, p. 51).
Nesse processo de
construção da identidade negra na literatura, é pertinente salientar que a
escrita feminina, embora ocultada por muito tempo pelo véu da pobreza e da
falta de instrução vinculados à exclusão racial e de gênero, conforme lembra
Maria Consuelo Cunha Campos, merece destaque na história da Literatura
Afro-Brasileira, especialmente nos textos autobiográficos que remetem às
narrativas de escravos ou slave
narratives norte-americanas. Tais narrativas se apresentam como descrições
escritas ou orais de eventos ou situações particulares vividas pelos escravos e
está centrada no rito de passagem do narrador escravo que escapa da escravidão
e alcança a liberdade, como observa Henry Louis Gates sobre as conquistas dos
escravos, “[...] essas conquistas refletem a superação do escravo das severas
condições de sua escravidão” (Gates, 1987, p. ix – tradução da autora).
Exemplos dessa conquista podem ser observados nos relatos biográficos de Rosa
Maria Egipiciaca de Vera Cruz e Teresa Margarida da Silva Orta que datam do
século XVIII.
Como se percebe, a
produção literária negra não é recente no Brasil, embora o seu reconhecimento
tardio date dos anos 70, quando pesquisadores e a própria comunidade
afro-brasileira decidiram fazer ecoar essa voz. Entretanto, a primeira
manifestação literária negra no país surgiu através das modinhas, lundus e
poemas de Domingos Caldas Barbosa, contidos nos dois volumes de Viola de Lereno (1798/1826). A ele,
seguiram-se poetas e prosadores como Gonçalves Dias, Luiz Gama, Maria Firmina
dos Reis, Machado de Assis, Tobias Barreto, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Lino
Guedes e Solano Trindade, os quais constituem os pilares de uma literatura que
se encontra em construção, conforme afirma Eduardo de Assis Duarte (2006).
Em 1859, num período
em que o Brasil vivia ainda sob a forte influência dos padrões europeus, e em
que tanto os afrodescedentes quanto as mulheres estavam submetidos ao poder
patriarcal, Maria Firmina dos Reis,
considerada a primeira escritora afro-brasileira, publica o romance Úrsula, o qual desponta como uma
tentativa fundamental no sentido de reestruturar o quadro de descaso para com
os descendentes africanos no cenário da ficção e como ponto de referência no
tocante à percepção da identidade enquanto sinônimo de interrelações. Seu
recente resgate (1975) trouxe para a literatura afro-brasileira um alento no
que diz respeito à tradição histórica deste tipo de escrita que despertava em
meados do século XIX, e no qual a autora propõe uma leitura factual do
comportamento do negro exilado.
Nesse romance, além
das personagens brancas, tem-se destacada a presença dos negros Túlio e Mãe
Susana. Essas vozes que ecoam no romance não deixam de ser a narrativa da
história da autora enquanto afro-descendente porque, assim como ela, clamam
pelo ideal de liberdade e igualdade. Ao relatar as experiências da escravidão,
Firmina dos Reis revela a história e as raízes negras, a preservação da
etnicidade e suas práticas culturais como forma de resistência ao colonialismo.
A autora também demonstra preocupação com a construção de uma nova identidade
do negro que se afirma diante do seu opressor. São as experiências vividas pela
autora e as histórias compartilhadas entre os membros de um mesmo grupo que
ativarão o plano da memória individual, estabelecendo, dessa forma, a dimensão
social, conforme assevera Halbwachs:
Para
que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam
seu depoimento: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com
suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para
que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento
comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento
do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se
opere a partir de dados e noções comuns que se encontram tanto no nosso
espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para
aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer
parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma
lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (Halbwachs, 1990,
p. 34).
Mais recentemente, o
discurso poético negro tomou corpo nas vozes de Aline França, Mirian Alves,
Sonia Fátima Conceição, Geni Guimarães, Conceição Evaristo e Ana Maria
Gonçalves, que se destacam não somente na poesia, mas fazem de seus romances um
campo de contextualização e discussão da realidade do afrodescendente no
Brasil.
O romance de Aline
França, A mulher de Aleduma (1985),
embora contrariando a tendência da literatura afro-brasileira de pormenorizar
os horrores da escravidão, mostra, através de um estilo surrealista e
metafórico, a batalha do negro para se fazer reconhecido enquanto sujeito de
sua história. Dessa forma, os heróis criados pela autora, num romance que
remete à epopeia, representam um ideal: o orgulho de ser negro.
A escrita da poeta e
romancista Geni Guimarães é marcada pelo tom de protesto e afirmação da
identidade negra. Seu romance autobiográfico, A cor da ternura (1988), voltado para o público infanto-juvenil,
desenvolve uma personagem feminina negra, construindo também uma identidade
afrocentrada. Desta feita, porém, não há heroicização como no texto de França.
Ao contrário, a autora bem representa as questões que envolvem a discriminação,
o preconceito e o racismo a que são submetidas as crianças negras no contexto
social.
Também poeta e
romancista, Conceição Evaristo,
autora de Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006), reforça o quadro
das escritoras negras que experimentam, por meio das vozes das protagonistas de
seus romances, engrossar o coro dos que clamam pelo reconhecimento, num
universo marcado pela pobreza e a discriminação.
Em Ponciá
Vicêncio, Evaristo traça o
perfil da mulher negra vivendo numa sociedade pós-abolicionista que deixa o
afrodescendente em posição tão vulnerável à supremacia do branco quanto àquela
vivida durante o regime escravocrata. A autora discute as consequências da
diáspora negra que resultou no afastamento do negro das suas origens, pela
busca da personagem por sua identidade e pelo reencontro com a família, o que
se apresenta como uma expectativa de ver superada a situação amarga vivida por
seus antepassados e redefinir o papel do negro na sociedade.
O romance de
Evaristo, mesmo resgatando a memória de seus antepassados, situa-se nas
histórias contemporâneas porque, conforme Assis Duarte (2006, p. 105), “busca
trazer ao leitor os dramas vividos na modernidade brasileira, com suas ilhas de
prosperidade cercadas de miséria e exclusão”. Ponciá Vicêncio traz à tona a realidade do cativeiro social da
modernidade, em que o negro é exposto a toda forma de negação.
Seu segundo romance, Becos da Memória, retoma lembranças da infância, seus personagens
representam pessoas que possivelmente fizeram parte da vida da autora. Essa,
fazendo uso de sua voz, reivindica a identidade de quem deseja ser protagonista
da própria história ao resgatar a história de seus antepassados. Evaristo, em
seu artigo “Memória e Escrevivência –
Parte I”, reafirma a origem de sua escrita como um conjunto de lembranças de
sua infância, como se traduzisse a sua escrita ficcional:
[...]
creio que a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a
infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e
adjacências. Dos fatos contados a meia voz, dos relatos da noite, segredos,
histórias que as crianças não podiam ouvir. [...]. Na origem da minha escrita,
ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos
vãos das portas contando em voz alta uma para as outras as suas mazelas, assim
como as suas alegrias (Evaristo, 2007, p. 19).
Entretanto, não
apenas o negro-autor é capaz de trazer, através da memória, a voz dos
excluídos. E aqui, é importante ressaltar as considerações de Eduardo de Assis
Duarte sobre a autoria na construção da literatura afro-brasileira. A autoria é
entendida por Duarte “não apenas como um dado exterior, mas na condição de
traduzida em constante discursiva
integrada à materialidade da construção literária” (DUARTE, 2006, p. 106), o
que requer, dessa forma, um engajamento com a problemática do negro. Isso
significa que apenas a consciência de ser afrodescendente não basta para se
filiar ao contexto da Literatura Afro-Brasileira, é preciso antes adotar
práticas discursivas que atendam aos propósitos e às necessidades deste grupo
marginalizado. No entender do autor, trata-se de um tópico controverso, na
medida em que há autores brancos fazendo literatura negra, como a jornalista
Ana Maria Gonçalves,
que em 2006, após encontrar alguns manuscritos, cuja autoria é atribuída à
Luiza Mahin, decide usá-los como base para o seu romance Um defeito de cor.
Trata-se de um
romance histórico, narrado, também, por uma voz feminina. Kahinde, a
narradora-autora, decide, no final da vida, escrever sobre suas andanças desde
que fora capturada na África e trazida ao Brasil. Os escritos de Kahinde
representam a esperança de manter viva sua memória, o que se configura no texto
de Ana Maria, na medida em que esta recompõe a história da protagonista e
preserva a memória do seu povo marginalizado. A narrativa da personagem não é
fruto de uma identidade individual, ao contrário, é construída coletivamente e
perpassa universos distintos: a ancestralidade da África; os horrores da
escravidão no Brasil; o retorno à África e, finalmente, o regresso ao Brasil em
busca do filho perdido.
Em seu trabalho de pesquisa, Ana Maria reúne
as memórias da narradora e, ao preencher as lacunas da história que, segundo
ela, correspondem às páginas perdidas do manuscrito, brinda o leitor com um
romance híbrido, no qual real e ficção se complementam. O romance representa,
portanto, uma escrita conjunta da construção da identidade do negro excluído,
ou seja, a memória guardada encontra respaldo no desejo de preservá-la, que
pode ser entendido como um comprometimento do autor negro ou branco, de
denunciar a opressão.
Ana Maria, em
entrevista a Renato Pompeu da revista “Retrato do Brasil” (2006, p. 45), embora
declare que não considera que a literatura tenha a responsabilidade de
influenciar na formação de uma consciência negra e que “escreveu um livro que
gostaria de ler, com informações que gostaria de ter encontrado em um livro
sobre o assunto”, reconstrói, através de suas pesquisas, o passado de horrores
que viveu o negro no Brasil. As histórias contadas em Um defeito de cor correspondem aos acontecimentos que marcaram o
período escravocrata e são narradas partindo da visão das personagens, sejam
elas reais ou ficcionais. Dessa forma, a autora contribui para fortalecer a
noção da existência de uma identidade negra que se manifestava já naquela
época, mas que somente agora se tornou objeto de discussão.
Maria Nazareth
Soares Fonseca, ao analisar o romance Becos
da memória, ressalta a importância dessa tomada de posição. Para ela,
O
sujeito que assume a ação de narrar o que expressam essas vozes excluídas sabe
que o registro dos sofrimentos dos miseráveis expõe os cortes constantes do
próprio corpo, feridas difíceis de serem cicatrizadas. Para salvar do
esquecimento as histórias de vida mergulhadas na pobreza extrema e no abandono,
o escritor, fazendo-se sujeito participante, assume narrar as histórias dos
lugares degradados como uma forma de luta contra a miséria, deslocando “o
prazer meramente contemplativo”, como diz Walter Benjamin, para uma atitude
política que se concretiza na maneira como a escrita procura vasculhar as vidas
dos que lutam por sobreviver em condições intensamente desfavoráveis (Fonseca apud Evaristo, 2006, p. 12).
Todas as autoras mencionadas neste artigo
exercem com propriedade o papel de críticas do regime da escravidão, dando voz
ao negro marginalizado. Entretanto, destaca-se Maria Firmina dos Reis pelo seu
pioneirismo e as escritas recentes de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves,
por fazerem parte da modernidade, entendendo-se que os séculos, que separam as
autoras, correspondem à necessidade de ver consolidada a identidade literária
do afrodescendente.
Firmina dos Reis é o próprio exemplo dessa
filiação, pois em função de fatores externos, tais como a cor da pele, o gênero
e os valores impostos pela sociedade patriarcal de sua época, obriga-se a negar
sua origem e lança seu romance sob a alcunha de “Uma Maranhense”. Entretanto, é
a posição da autora como afrodescendente que faz vir à tona um romance
inteiramente pautado na questão do negro.
Conceição Evaristo
também afirma seu pertencimento à classe de autores afrodescendentes, não
apenas pelos romances Ponciá Vicêncio e
Becos da memória, mas pelas vozes que
ressoam em seus contos e poesia e que destacam, não somente a imagem
estereotipada do povo negro, o sofrimento de seus antepassados, mas também a
dimensão política e histórica das vitimas da diáspora negra. Ao tratar da
questão da autoria, Evaristo declara sobre o seu romance, em entrevista a
Giselle Araújo que “Há uma relação muito grande entre o sujeito autoral com a
ficção na literatura afro-brasileira. Mas Ponciá tem uma história própria,
embora eu parta de vivência na comunidade negra para tirar os elementos da
ficção” (Evaristo, p. 1, 2007), comprovando dessa forma que a literatura afro
precisa, de certa maneira, de elementos reais para contar sua história.
Essa prática
discursiva encontra respaldo no pensamento de Elaine Showalter citada por Lucia
Osana Zolin (2005, p. 277-278). Em seus estudos sobre a literatura inglesa,
Showalter percebe que a escrita feminina dos grupos minoritários recorre a
determinados padrões, temas e problemas como uma forma própria de manifestação
em relação à sociedade dominante, ou seja, ainda segundo a autora, constrói-se
uma subcultura dentro da sociedade patriarcal. Showalter destaca, também, as
três fases percorridas por essas subculturas literárias: a imitação ou
internalização dos padrões dominantes; as fases de protesto e de
autodescoberta.
O romance de Firmina
dos Reis, o primeiro a elevar o negro à categoria de sujeito do romance,
pertence a primeira fase, pois imita, de certa forma, os padrões europeus na
sua função estética.
Eticamente, porém, enquadra-se na segunda fase devido ao surgimento de vozes
que protestam contra os valores da época e vêm em defesa dos direitos e valores
das minorias, questão essa que se repete no romance de Ana Maria Gonçalves,
agora na voz de Kahinde.
Seguindo a
classificação de Showalter, observa-se que, nos romances de Conceição Evaristo,
ocorre também uma intercalação de fases. Em Ponciá
Vicêncio, por
exemplo, a busca da personagem pela afirmação da identidade se manifesta como
forma de protesto ao regime patriarcalista, já que a personagem não aceita o
fato de seu sobrenome ser o mesmo do senhor das terras que os negros escravos
ocupavam. Ponciá “Não ouvia o seu nome responder dentro de si” e sentia-se
ferida pela “reminiscência do poderio do senhor” (Evaristo, 2003, p. 19). Já Becos da memória traduz, através da voz
de Maria-Nova, o sentimento de Evaristo. Ambas rejeitam a condição de vítimas
da sociedade e assumem uma identidade outra, protagonistas de suas histórias
pessoais e porta-vozes das histórias de seu povo.
Partindo
dos conceitos de Hall e Nascimento sobre a identidade e de Halbawachs sobre a
memória coletiva foram analisados os romances de Maria Firmina dos Reis,
Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves. Nessa análise, constatou-se que a
fixação da identidade negra constitui o alicerce ético dos textos, uma vez que
o discurso proferido pelas personagens reflete o pensamento de autoras que,
independente da cor da pele, estão ligadas à problemática negra e demonstram
por meio de sua escrita que, como indivíduos únicos, compartilham de
experiências múltiplas resgatadas e reunidas pela memória.
Referências
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HALBWACHS, M. 1990. A
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JODELET, Denise. Memorie che si evolvono. In: AA.VV. Memoria
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio
de Janeiro: DP&A, 2001.
NASCIMENTO, Elisa
Larkin do. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero do
Brasil. São Paulo: Summus, 2003.
REIS, Maria Firmina
dos. Úrsula. Florianópolis: Ed.
Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.
ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria
feminina. In: BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (org). Teoria Literária: Abordagens históricas e tendências
contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005.
Maria Firmina dos Reis nasceu em
São Luis, em 11 de outubro de 1815 e faleceu em Guimarães/MA,
em 1917. Foi a primeira professora primária a obter o cargo por concurso. Como
escritora, colaborou na imprensa local com ficções. Escreveu os contos A escrava (1887) e Gupeva (1861); poesias
que se encontram reunidas no livro Cantos
à beira mar (1871); crônicas e charadas; e, como musicista, compôs o Hino à libertação dos escravos e o Hino à mocidade.
Em linhas gerais, o texto de Firmina dos Reis narra a história de amor entre os
jovens brancos Tancredo e Úrsula e a interferência maléfica do Comendador
Fernando P., tio da menina que se apaixona por ela e é rejeitado, culminando
com o fim trágico dos dois apaixonados, delineando, assim, as características
do romance ultra romântico, em que o amor só é atingido em sua plenitude após a
morte. Entretanto, é o discurso anti-escravagista da autora, enunciado através
de sua própria voz, bem como da voz das personagens negras, Mãe Susana e Túlio,
que vai constituir o foco narrativo do romance.
Artigo publicado na Revista Entrelinhas, v. 5