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sábado, 28 de dezembro de 2013
sexta-feira, 16 de agosto de 2013
sábado, 20 de julho de 2013
O discurso da memória e a identidade feminina na literatura afro-brasileira
Paraguassu de Fátima Rocha
Este
artigo insere-se nos estudos da literatura de autoria de minorias étnicas e
visa examinar o processo de construção da identidade do romance afro-brasileiro
através da leitura dos textos de Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo e
Ana Maria Gonçalves, destacando-se as diferentes vozes que emanam do romance e
são enunciadas tanto pelas autoras quanto pelas personagens. Considera-se,
também, no presente estudo, a questão da memória e sua relação com a
identidade.
Para
entender a construção de uma identidade literária afro-brasileira, é relevante
lembrar que o negro cativo, trazido da África, não serviu ao Brasil apenas como
mão de obra nas lavouras de café ou cana de açúcar, mas atuou também como
elemento disseminador de valores culturais da sua terra de origem. Tratar,
portanto, da Literatura Afro-Brasileira sem se voltar para os primeiros passos
dados no processo de aculturação do negro, que ocorre já na sua vinda para o
Brasil, é ver rompida uma linha que mostra a evolução dessa etnia numa nação
que ajudou a edificar.
O
País parece ter esquecido o que já defendia Joaquim Nabuco em suas campanhas
abolicionistas, ou seja, que a raça negra foi responsável pela viabilização de
um sonho do colonizador branco. Evidentemente, as marcas da escravidão e do
racismo impostas ao negro e perpetuadas ao longo dos séculos por uma sociedade
que não soube reconhecer suas contribuições continuam indeléveis, assim como as
tentativas de reparação desse erro histórico têm gerado discussões muitas vezes
contrárias à afirmação de um povo que quer apenas ser brasileiro e, como tal,
legitimar os seus direitos à cidadania.
A
presença do negro africano na história brasileira data de 1502 quando os
primeiros navios tumbeiros carregados de escravos aportaram em nossas terras.
Sua vinda, além dos aspectos econômicos favoráveis às nações europeias,
justificava-se pela necessidade de uma mão de obra mais qualificada para
desenvolver o trabalho nos engenhos e também para substituir o trabalho do
índio que não se mostrava eficaz na execução de determinadas tarefas.
Entretanto, o contingente de aproximadamente dois milhões de negros, arrancado
de diversos pontos da África e espalhado pelo solo brasileiro, não contribuiu
para o crescimento da nação apenas pela sua força bruta, uma vez que, trazendo
consigo seus conhecimentos, tradições e costumes, ajudou a definir o perfil de
uma sociedade que se quer branca, mas que reivindica para si a ancestralidade
da África quando isso pode lhe beneficiar, chamando-se de negro, mulato ou
pardo. Porém, independente das posições político-sociais que englobam também as
questões raciais, o negro tem mostrado imensa determinação em preservar seus
valores culturais, dentre os quais, a sua produção literária, seja recontando
sua história, ou buscando, através de alternativas diversas, fazer valer sua
identidade.
A
discussão que se instaura em torno da construção da identidade do descendente
africano encontra-se embasada no processo de transformação, de trocas e de
identificações. Para tratar da questão da identidade, faz-se necessário retomar
os pensamentos de Stuart Hall e Elisa Larkin do Nascimento. Hall (2001, p. 13)
defende que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas em torno de um “eu” coerente, identidades
contraditórias que proporcionam um deslocamento dos processos de identificação.
Já para Nascimento (2003, p. 31), a identidade representa a articulação de
referenciais que orientam a forma de agir e de mediar a relação do sujeito com
os outros, com o mundo e consigo mesmo e está relacionada com a experiência de
vida individual mesclada às representações da experiência coletiva de sua
comunidade e sociedade, aprendidas na sua interação com os outros.
Ao relacionar os pensamentos de Hall
e Nascimento, percebe-se que a identidade está diretamente ligada à memória na
construção da escrita afro-brasileira, uma vez que “A narrativa duma vida faz
parte de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada nas
histórias dos grupos a partir dos quais os indivíduos adquirem sua identidade”,
conforme salienta Jodelet (1994, p. 55) em seu artigo “Memorie che si evolvono”. Dessa forma, o escritor afro-brasileiro,
ao recontar seu passado de abusos, firma-se, ainda que à margem, como senhor de
uma história que só poderia ser contada de forma tão incidente por aqueles que
a viveram. Nesse contexto, cabe lembrar a posição da escritora e poeta negra,
Conceição Evaristo. Para ela,
Ao
se observar a resistência da tradição cultural negra e a sua reelaboração, a
sua reterritorialização no Brasil e em outros países, da diáspora africana,
percebemos o caráter pessoal e coletivo da memória como possibilitador de
construção de uma identidade. [...] A literatura afro-brasileira traz o
registro de uma memória social, enquanto lembranças de vários indivíduos.
Memória que permitiu um conhecimento de um sistema simbólico, que possibilitou
uma reorganização do território negro da diáspora, através de uma mística
negra, vivida em um tempo que escapa a uma mediação cronológica, por se tratar
de um tempo mítico (Evaristo, 2008, p. 6).
Esse posicionamento vai ao encontro
do que postula Maurice Halbawachs sobre a memória coletiva. Segundo o autor,
[...]
se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte
um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram,
enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam
uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para
cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto
de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o
lugar que eu ali ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que
mantenho com outros meios. Não é de admirar que do instrumento comum nem todos
aproveitem do mesmo modo. Todavia quando tentamos explicar essa diversidade,
voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza
social (halbwachs, 1990, p. 51).
Nesse processo de
construção da identidade negra na literatura, é pertinente salientar que a
escrita feminina, embora ocultada por muito tempo pelo véu da pobreza e da
falta de instrução vinculados à exclusão racial e de gênero, conforme lembra
Maria Consuelo Cunha Campos, merece destaque na história da Literatura
Afro-Brasileira, especialmente nos textos autobiográficos que remetem às
narrativas de escravos ou slave
narratives norte-americanas. Tais narrativas se apresentam como descrições
escritas ou orais de eventos ou situações particulares vividas pelos escravos e
está centrada no rito de passagem do narrador escravo que escapa da escravidão
e alcança a liberdade, como observa Henry Louis Gates sobre as conquistas dos
escravos, “[...] essas conquistas refletem a superação do escravo das severas
condições de sua escravidão” (Gates, 1987, p. ix – tradução da autora)[1].
Exemplos dessa conquista podem ser observados nos relatos biográficos de Rosa
Maria Egipiciaca de Vera Cruz e Teresa Margarida da Silva Orta que datam do
século XVIII.
Como se percebe, a
produção literária negra não é recente no Brasil, embora o seu reconhecimento
tardio date dos anos 70, quando pesquisadores e a própria comunidade
afro-brasileira decidiram fazer ecoar essa voz. Entretanto, a primeira
manifestação literária negra no país surgiu através das modinhas, lundus e
poemas de Domingos Caldas Barbosa, contidos nos dois volumes de Viola de Lereno (1798/1826). A ele,
seguiram-se poetas e prosadores como Gonçalves Dias, Luiz Gama, Maria Firmina
dos Reis, Machado de Assis, Tobias Barreto, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Lino
Guedes e Solano Trindade, os quais constituem os pilares de uma literatura que
se encontra em construção, conforme afirma Eduardo de Assis Duarte (2006).
Em 1859, num período
em que o Brasil vivia ainda sob a forte influência dos padrões europeus, e em
que tanto os afrodescedentes quanto as mulheres estavam submetidos ao poder
patriarcal, Maria Firmina dos Reis[2],
considerada a primeira escritora afro-brasileira, publica o romance Úrsula, o qual desponta como uma
tentativa fundamental no sentido de reestruturar o quadro de descaso para com
os descendentes africanos no cenário da ficção e como ponto de referência no
tocante à percepção da identidade enquanto sinônimo de interrelações. Seu
recente resgate (1975) trouxe para a literatura afro-brasileira um alento no
que diz respeito à tradição histórica deste tipo de escrita que despertava em
meados do século XIX, e no qual a autora propõe uma leitura factual do
comportamento do negro exilado.
Nesse romance, além
das personagens brancas, tem-se destacada a presença dos negros Túlio e Mãe
Susana. Essas vozes que ecoam no romance não deixam de ser a narrativa da
história da autora enquanto afro-descendente porque, assim como ela, clamam
pelo ideal de liberdade e igualdade. Ao relatar as experiências da escravidão,
Firmina dos Reis revela a história e as raízes negras, a preservação da
etnicidade e suas práticas culturais como forma de resistência ao colonialismo.
A autora também demonstra preocupação com a construção de uma nova identidade
do negro que se afirma diante do seu opressor. São as experiências vividas pela
autora e as histórias compartilhadas entre os membros de um mesmo grupo que
ativarão o plano da memória individual, estabelecendo, dessa forma, a dimensão
social, conforme assevera Halbwachs:
Para
que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam
seu depoimento: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com
suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para
que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento
comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento
do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se
opere a partir de dados e noções comuns que se encontram tanto no nosso
espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para
aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer
parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma
lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (Halbwachs, 1990,
p. 34).
Mais recentemente, o
discurso poético negro tomou corpo nas vozes de Aline França, Mirian Alves,
Sonia Fátima Conceição, Geni Guimarães, Conceição Evaristo e Ana Maria
Gonçalves, que se destacam não somente na poesia, mas fazem de seus romances um
campo de contextualização e discussão da realidade do afrodescendente no
Brasil.
O romance de Aline
França, A mulher de Aleduma (1985),
embora contrariando a tendência da literatura afro-brasileira de pormenorizar
os horrores da escravidão, mostra, através de um estilo surrealista e
metafórico, a batalha do negro para se fazer reconhecido enquanto sujeito de
sua história. Dessa forma, os heróis criados pela autora, num romance que
remete à epopeia, representam um ideal: o orgulho de ser negro.
A escrita da poeta e
romancista Geni Guimarães é marcada pelo tom de protesto e afirmação da
identidade negra. Seu romance autobiográfico, A cor da ternura (1988), voltado para o público infanto-juvenil,
desenvolve uma personagem feminina negra, construindo também uma identidade
afrocentrada. Desta feita, porém, não há heroicização como no texto de França.
Ao contrário, a autora bem representa as questões que envolvem a discriminação,
o preconceito e o racismo a que são submetidas as crianças negras no contexto
social.
Também poeta e
romancista, Conceição Evaristo[3],
autora de Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006), reforça o quadro
das escritoras negras que experimentam, por meio das vozes das protagonistas de
seus romances, engrossar o coro dos que clamam pelo reconhecimento, num
universo marcado pela pobreza e a discriminação.
O romance de
Evaristo, mesmo resgatando a memória de seus antepassados, situa-se nas
histórias contemporâneas porque, conforme Assis Duarte (2006, p. 105), “busca
trazer ao leitor os dramas vividos na modernidade brasileira, com suas ilhas de
prosperidade cercadas de miséria e exclusão”. Ponciá Vicêncio traz à tona a realidade do cativeiro social da
modernidade, em que o negro é exposto a toda forma de negação.
Seu segundo romance, Becos da Memória, retoma lembranças da infância, seus personagens
representam pessoas que possivelmente fizeram parte da vida da autora. Essa,
fazendo uso de sua voz, reivindica a identidade de quem deseja ser protagonista
da própria história ao resgatar a história de seus antepassados. Evaristo, em
seu artigo “Memória e Escrevivência –
Parte I”, reafirma a origem de sua escrita como um conjunto de lembranças de
sua infância, como se traduzisse a sua escrita ficcional:
[...]
creio que a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a
infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e
adjacências. Dos fatos contados a meia voz, dos relatos da noite, segredos,
histórias que as crianças não podiam ouvir. [...]. Na origem da minha escrita,
ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos
vãos das portas contando em voz alta uma para as outras as suas mazelas, assim
como as suas alegrias (Evaristo, 2007, p. 19).
Entretanto, não
apenas o negro-autor é capaz de trazer, através da memória, a voz dos
excluídos. E aqui, é importante ressaltar as considerações de Eduardo de Assis
Duarte sobre a autoria na construção da literatura afro-brasileira. A autoria é
entendida por Duarte “não apenas como um dado exterior, mas na condição de
traduzida em constante discursiva
integrada à materialidade da construção literária” (DUARTE, 2006, p. 106), o
que requer, dessa forma, um engajamento com a problemática do negro. Isso
significa que apenas a consciência de ser afrodescendente não basta para se
filiar ao contexto da Literatura Afro-Brasileira, é preciso antes adotar
práticas discursivas que atendam aos propósitos e às necessidades deste grupo
marginalizado. No entender do autor, trata-se de um tópico controverso, na
medida em que há autores brancos fazendo literatura negra, como a jornalista
Ana Maria Gonçalves[4],
que em 2006, após encontrar alguns manuscritos, cuja autoria é atribuída à
Luiza Mahin, decide usá-los como base para o seu romance Um defeito de cor.
Trata-se de um
romance histórico, narrado, também, por uma voz feminina. Kahinde, a
narradora-autora, decide, no final da vida, escrever sobre suas andanças desde
que fora capturada na África e trazida ao Brasil. Os escritos de Kahinde
representam a esperança de manter viva sua memória, o que se configura no texto
de Ana Maria, na medida em que esta recompõe a história da protagonista e
preserva a memória do seu povo marginalizado. A narrativa da personagem não é
fruto de uma identidade individual, ao contrário, é construída coletivamente e
perpassa universos distintos: a ancestralidade da África; os horrores da
escravidão no Brasil; o retorno à África e, finalmente, o regresso ao Brasil em
busca do filho perdido.
Em seu trabalho de pesquisa, Ana Maria reúne
as memórias da narradora e, ao preencher as lacunas da história que, segundo
ela, correspondem às páginas perdidas do manuscrito, brinda o leitor com um
romance híbrido, no qual real e ficção se complementam. O romance representa,
portanto, uma escrita conjunta da construção da identidade do negro excluído,
ou seja, a memória guardada encontra respaldo no desejo de preservá-la, que
pode ser entendido como um comprometimento do autor negro ou branco, de
denunciar a opressão.
Ana Maria, em
entrevista a Renato Pompeu da revista “Retrato do Brasil” (2006, p. 45), embora
declare que não considera que a literatura tenha a responsabilidade de
influenciar na formação de uma consciência negra e que “escreveu um livro que
gostaria de ler, com informações que gostaria de ter encontrado em um livro
sobre o assunto”, reconstrói, através de suas pesquisas, o passado de horrores
que viveu o negro no Brasil. As histórias contadas em Um defeito de cor correspondem aos acontecimentos que marcaram o
período escravocrata e são narradas partindo da visão das personagens, sejam
elas reais ou ficcionais. Dessa forma, a autora contribui para fortalecer a
noção da existência de uma identidade negra que se manifestava já naquela
época, mas que somente agora se tornou objeto de discussão.
Maria Nazareth
Soares Fonseca, ao analisar o romance Becos
da memória, ressalta a importância dessa tomada de posição. Para ela,
O
sujeito que assume a ação de narrar o que expressam essas vozes excluídas sabe
que o registro dos sofrimentos dos miseráveis expõe os cortes constantes do
próprio corpo, feridas difíceis de serem cicatrizadas. Para salvar do
esquecimento as histórias de vida mergulhadas na pobreza extrema e no abandono,
o escritor, fazendo-se sujeito participante, assume narrar as histórias dos
lugares degradados como uma forma de luta contra a miséria, deslocando “o
prazer meramente contemplativo”, como diz Walter Benjamin, para uma atitude
política que se concretiza na maneira como a escrita procura vasculhar as vidas
dos que lutam por sobreviver em condições intensamente desfavoráveis (Fonseca apud Evaristo, 2006, p. 12).
Todas as autoras mencionadas neste artigo
exercem com propriedade o papel de críticas do regime da escravidão, dando voz
ao negro marginalizado. Entretanto, destaca-se Maria Firmina dos Reis pelo seu
pioneirismo e as escritas recentes de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves,
por fazerem parte da modernidade, entendendo-se que os séculos, que separam as
autoras, correspondem à necessidade de ver consolidada a identidade literária
do afrodescendente.
Firmina dos Reis é o próprio exemplo dessa
filiação, pois em função de fatores externos, tais como a cor da pele, o gênero
e os valores impostos pela sociedade patriarcal de sua época, obriga-se a negar
sua origem e lança seu romance sob a alcunha de “Uma Maranhense”. Entretanto, é
a posição da autora como afrodescendente que faz vir à tona um romance
inteiramente pautado na questão do negro.
Conceição Evaristo
também afirma seu pertencimento à classe de autores afrodescendentes, não
apenas pelos romances Ponciá Vicêncio e
Becos da memória, mas pelas vozes que
ressoam em seus contos e poesia e que destacam, não somente a imagem
estereotipada do povo negro, o sofrimento de seus antepassados, mas também a
dimensão política e histórica das vitimas da diáspora negra. Ao tratar da
questão da autoria, Evaristo declara sobre o seu romance, em entrevista a
Giselle Araújo que “Há uma relação muito grande entre o sujeito autoral com a
ficção na literatura afro-brasileira. Mas Ponciá tem uma história própria,
embora eu parta de vivência na comunidade negra para tirar os elementos da
ficção” (Evaristo, p. 1, 2007), comprovando dessa forma que a literatura afro
precisa, de certa maneira, de elementos reais para contar sua história.
Essa prática
discursiva encontra respaldo no pensamento de Elaine Showalter citada por Lucia
Osana Zolin (2005, p. 277-278). Em seus estudos sobre a literatura inglesa,
Showalter percebe que a escrita feminina dos grupos minoritários recorre a
determinados padrões, temas e problemas como uma forma própria de manifestação
em relação à sociedade dominante, ou seja, ainda segundo a autora, constrói-se
uma subcultura dentro da sociedade patriarcal. Showalter destaca, também, as
três fases percorridas por essas subculturas literárias: a imitação ou
internalização dos padrões dominantes; as fases de protesto e de
autodescoberta.
O romance de Firmina
dos Reis, o primeiro a elevar o negro à categoria de sujeito do romance,
pertence a primeira fase, pois imita, de certa forma, os padrões europeus na
sua função estética[5].
Eticamente, porém, enquadra-se na segunda fase devido ao surgimento de vozes
que protestam contra os valores da época e vêm em defesa dos direitos e valores
das minorias, questão essa que se repete no romance de Ana Maria Gonçalves,
agora na voz de Kahinde.
Seguindo a
classificação de Showalter, observa-se que, nos romances de Conceição Evaristo,
ocorre também uma intercalação de fases. Em Ponciá
Vicêncio , por
exemplo, a busca da personagem pela afirmação da identidade se manifesta como
forma de protesto ao regime patriarcalista, já que a personagem não aceita o
fato de seu sobrenome ser o mesmo do senhor das terras que os negros escravos
ocupavam. Ponciá “Não ouvia o seu nome responder dentro de si” e sentia-se
ferida pela “reminiscência do poderio do senhor” (Evaristo, 2003, p. 19). Já Becos da memória traduz, através da voz
de Maria-Nova, o sentimento de Evaristo. Ambas rejeitam a condição de vítimas
da sociedade e assumem uma identidade outra, protagonistas de suas histórias
pessoais e porta-vozes das histórias de seu povo.
Partindo
dos conceitos de Hall e Nascimento sobre a identidade e de Halbawachs sobre a
memória coletiva foram analisados os romances de Maria Firmina dos Reis,
Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves. Nessa análise, constatou-se que a
fixação da identidade negra constitui o alicerce ético dos textos, uma vez que
o discurso proferido pelas personagens reflete o pensamento de autoras que,
independente da cor da pele, estão ligadas à problemática negra e demonstram
por meio de sua escrita que, como indivíduos únicos, compartilham de
experiências múltiplas resgatadas e reunidas pela memória.
Referências
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contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005.
[1] […] these
achievements reflect the slaves’ overcoming of the “severe conditions of their
bondage” (tradução da autora).
[2]
Maria Firmina dos Reis nasceu em
São Luis , em 11 de outubro de 1815 e faleceu em Guimarães/MA,
em 1917. Foi a primeira professora primária a obter o cargo por concurso. Como
escritora, colaborou na imprensa local com ficções. Escreveu os contos A escrava (1887) e Gupeva (1861); poesias
que se encontram reunidas no livro Cantos
à beira mar (1871); crônicas e charadas; e, como musicista, compôs o Hino à libertação dos escravos e o Hino à mocidade.
[3]
Maria Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte /MG
em 1946. Foi professora primária e atualmente é professora universitária. Além dos romances Ponciá Vicêncio e Becos da
memória é autora de vários artigos, contos e poesias. Essas reunidas no
livro Poemas da recordação e outros
movimentos (2008).
[4]
Ana Maria Gonçalves nasceu em Ibiá/MG em 1970. É formada em Publicidade e
escritora.
[5]
Em linhas gerais, o texto de Firmina dos Reis narra a história de amor entre os
jovens brancos Tancredo e Úrsula e a interferência maléfica do Comendador
Fernando P., tio da menina que se apaixona por ela e é rejeitado, culminando
com o fim trágico dos dois apaixonados, delineando, assim, as características
do romance ultra romântico, em que o amor só é atingido em sua plenitude após a
morte. Entretanto, é o discurso anti-escravagista da autora, enunciado através
de sua própria voz, bem como da voz das personagens negras, Mãe Susana e Túlio,
que vai constituir o foco narrativo do romance.
Artigo publicado na Revista Entrelinhas, v. 5
domingo, 14 de abril de 2013
A METÁFORA DE ARIEL PARA O ASSIMILACIONISMO NA NARRATIVA AFRO: ENTRE A SUBMISSÃO E O DESEJO DE LIBERDADE
A
personagem Ariel da peça A Tempestade de William Shakespeare (1982) é
identificada na narrativa afro-descendente como o símbolo da submissão pela sua
aproximação com a cultura do colonizador europeu, representado no texto de
Shakespeare por Próspero. Esse caráter de submissão assumido pela personagem é
descrito por Munanga (1986) como uma das saídas encontradas pelos
afro-descendentes para se integrar ao mundo novo e classificada por ele como
assimilacionista. Analisando-se tal conceito é que se pretende discutir o
assimilacionismo como a condição do afro-descendente que se encontra entre a
ilusão do pertencimento e o desejo da volta às origens em busca da liberdade,
relacionando-se na narrativa afro exemplos de personagens assimilacionistas que
representam a metáfora de Ariel na África, Estados Unidos, Brasil, Caribe e
Europa.
A
literatura afro-descendente é constituída por metáforas e busca resgatar o
passado glorioso de uma nação criada pelo colonizador branco, ou ainda conforme
descreve HALL (2003, p. 31) ―África‖ é, em todo caso, uma construção moderna,
que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas cujo
principal ponto de origem comum situava-se no tráfico de escravos.‖ Ao tráfico
de escravos alia-se a metáfora do movimento representada pelo navio negreiro em
que, segundo GLISSANT (2005 p. 19), ―[...] os africanos chegam despojados de
tudo, de toda e qualquer possibilidade, e mesmo despojados de sua língua
[...].‖
Nessa
prática dispersiva em que o africano se vê afastado de sua cultura e as perdas
se tornam inevitáveis, conforme relata Charles Johnson em seu romance A
passagem do meio ―[...] maridos separados de esposas, filhos de pais, [...]
cada separação como uma amputação ou esfolamento, pois como um clã eram tão
unidos quanto células num corpo.‖ (JOHNSON, p. 62), a construção de uma nova
identidade é condição indiscutível como garantia de sobrevivência. Portanto, o
reconhecimento da existência de uma nação afro-descendente leva a literatura
contemporânea a reexaminar o tratamento que foi dado ao africano em seu
discurso de formação. Dessa forma, cabe a literatura promover o resgate da identidade
africana e projetar o afro-descendente no cenário do colonizador, porque não há
como se alienar aos primeiros efeitos da diáspora e as consequências atuais da
política da barbárie.
O
discurso crítico volta-se muitas vezes para as questões de raça, cor ou etnia,
desvinculando-se da noção de humanidade e reafirmando uma tendência para o
racismo, conforme constata Elisa Larkin Nascimento. A autora argumenta que ―Se
a essência do racismo está nesta negação da humanidade do negro, o gesto de
assumir e valorizar a identidade negra constitui diametralmente o seu oposto: a
afirmação dessa humanidade.‖ (NASCIMENTO,
2003, p. 54). Assim, questiona-se a quem interessam tais discussões e como elas
vêm favorecendo os filhos do navio negreiro?
Se
como primeiros efeitos da dispersão do africano pelo novo mundo tem-se a
escravidão, o domínio e o aniquilamento do ser, o que jamais poderá ser
redimido, as suas consequências hoje mostram-se profundamente desastrosas, uma
vez que as políticas adotadas para a inclusão do afro-descendente não se
projetam como eficientes, e provocam o que Cornel West classifica como ―[...] a
eclipse da esperança, o colapso sem precedentes do significado da vida, [...]‖
(WEST, 1994, p. 28).
E
é perante esse quadro e diante do novo mundo branco que o africano, segundo DU
BOIS (1903/1999, p. 54), desenvolve o que convencionou chamar de consciência
dupla, tratando-a como a ―sensação de estar sempre a se olhar com os olhos dos
outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a
mirá-lo com divertido desprezo e piedade. [...]‖. Com isso, o afro-descendente
faz uso de recursos capazes de integrá-los a diferentes culturas, destacando-se
aqui a saída assimilacionista descrita por MUNANGA. Segundo ele,
Na
sua totalidade, a elite negra alimentava um sonho: assemelhar-se tanto quanto
possível ao branco, para, na sequência, reclamar o reconhecimento de fato e de
direito. Como tornar real essa semelhança a não ser através da troca de pele?
Ora, para nisso chegarem, pressupunha-se a admiração da cor do outro, o amor ao
branco, a aceitação da colonização e a auto-recusa.‖ (MUNANGA, 1986, p. 27)
Associada
à aceitação da colonização, verifica-se a metáfora de Ariel que encontra em
Próspero, o invasor da ilha, uma possibilidade de liberdade, vivendo para isso
sob o seu domínio, Ariel - ―[...] Tua vontade forte é que domina/ Ariel e seu
poder‖ (SHAKESPEARE, 1982, p. 38). Porém esse mesmo gênio dominado não esquece
a promessa que lhe fora feita pelo colonizador:
Ariel – Mais fadigas?
Já que novos trabalhos me
destinas,
permite que te lembre uma
promessa
que ainda não cumpriste.
Próspero – Quê! Zangado? Que
podes desejar
Ariel
– A liberdade. (SHAKESPEARE, p. 40)
Essa
mesma busca pela liberdade está presente no romance Úrsula de Maria Firmino dos
Reis (2004), catalogado como um dos primeiros romances brasileiros a tratar da
escravidão e que relata o encontro de um jovem branco salvo por um escravo
negro, o qual recebe em troca de seu gesto nobre, a alforria. Entretanto, a
liberdade não se configura em território estranho, mas é explicada pela
personagem Susana, uma velha africana, como aquela vivida por ela em seu local
de origem.
– Tu! tu livre? Ah não me iludas!
– exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. [...] Liberdade... eu
gozei em minha mocidade! Continuou Suzana com amargura. Túlio, meu filho,
ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu.
(REIS, 2004, p. 114)
Nesse
discurso, afirma Zahidé Muzart,
[...] é Mãe Susana quem vai
explicar a Túlio (...) o sentido da verdadeira liberdade, que não seria nunca a
de um alforriado num país racista.‖ Para tanto, a velha escrava recorda sua
terra natal, a infância livre, o amor de seu companheiro e a vida feliz que
levavam junto à filhinha até o dia em que foi capturada pelos ―bárbaros‖
mercadores de seres humanos. Segue-se a narrativa do aprisionamento e da
crueldade com que foi tratada ao deixar para sempre ―pátria, esposo, mãe,
filha, e liberdade. (MUZART, 2000, p. 266).
Assim,
sustenta-se a tese de que o assimilacionismo é uma via de mão dupla, pois se em
determinados momentos o afro-descendente se incorpora de forma ilusória a um
determinado grupo social satisfazendo seus ideais de pertencimento, ou ainda
como caracteriza O. Mannoni (1956), citado por Rodriguez (2002, p. 203) ―Ariel
[...] o colonizado que quer desesperadamente ocupar o lugar do colonizador, o
que mantém a ilusão de igualdade que se manifesta em um ―conjunto de
disposições neuróticas inconscientes.‖, as quais são percebidas na personagem
Pecola de Tony Morrison (2003), em outros o afasta provisoriamente de sua
origem, até que seja possível reconhecer antigos valores e se voltar para o espaço
abandonado. Milkman, também personagem de Morrison vai assumir esse contorno,
embora tenha outra projeção em A canção de Solomon.
Ao
assimilacionismo confere-se assim, um caráter de mal necessário e inevitável,
seja no campo ficcional ou nas perspectivas da denúncia de fatos tão propagadas
atualmente, e feitas pelos defensores do afro-descendente, quer diga respeito a
sua cultura, sua identidade ou seu posicionamento social.
À
questão do assimilacionismo somam-se as considerações de Cornel West ao tratar
do niilismo na América negra. Para ele, o niilismo ―[...] é a experiência de
viver dominado por uma pavorosa falta de esperança e (acima de tudo) de amor‖
(WEST, 1994, p. 31), que pode ser combatido principalmente se for reconhecido o
fato de que as pessoas rebaixadas e oprimidas também buscam sua identidade, um
significado de vida e valorização pessoal.
Conforme
mencionado anteriormente, o exemplo clássico de assimilacionismo na literatura
é aquele apresentado pela escritora norte-americana Tony Morrison (2003), em O
olho mais azul. Pecola, protagonista do romance, pertencente a uma família
pobre, negra e feia, segundo os padrões impostos pela sociedade em que vivia,
deseja ardentemente ter olhos azuis,
Toda noite, sem falta, ela rezava
para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. [...] não tinha
perdido a esperança. Levaria muito tempo para que uma coisa maravilhosa como
aquela acontecesse. (MORRYSON, 2003, p. 50)
A
personagem considerava que essa seria a única possibilidade de sobreviver em
meio aos conflitos a que estava sujeita. O posicionamento de Pecola, além de
demonstrar ingenuidade, carrega o estigma do auto-ódio, ou seja, a negação de
sua própria existência e que se manifesta pelo ódio que nutre por tudo e todos
que se relacionam a sua origem, ou ainda conforme argumenta Albert Memmi (1967)
em Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador: ―A recusa de si
mesmo e o amor do outro são comuns a todo candidato à assimilação. [...]
subjacente ao amor do colonizador há um complexo de sentimentos que vão da
vergonha ao ódio de si mesmo‖ (MEMMI, 1967, p. 107).
Condição
semelhante à de Pecola encontra-se no conto da autora brasileira, Geni
Guimarães (1989), Metamorfose, no qual a personagem relata sua história de
vida, cujo principal objetivo era assemelhar-se ao branco tentando clarear sua
pele raspando-a com pó de tijolo. Segundo a autora, o que lhe sobraram foram
apenas as cicatrizes da autoflagelação.
A
situação vivida pela personagem acima enquadra-se no que HELMS (1993b) citado
por Franklin Martins, classifica como submissão ―ativa‖, ou seja,
[...] àquela caracterizada pelo
fato de as pessoas idealizarem as características do branco e sua cultura e,
simultaneamente, desvalorizarem a negritude e a cultura negra, mediante
atitudes e comportamentos explícitos, associando os aspectos etno-raciais
negros a qualidades ―más‖.‖ (MARTINS, p. 73)
Porém,
a presença de personagens assimilacionistas na literatura afro não se restringe
aos textos de Morrison e da brasileira Geni Guimarães , mas estende-se também
pelo Caribe e Europa e tem em sua nação de origem a narrativa contundente de
Chinua Achebe (1983). Em O mundo se despedaça, o escritor nigeriano relata os
efeitos da colonização europeia sobre as tribos da Nigéria, mostrando a
incoerência dos colonizadores ao tentarem implementar o desenvolvimento numa
sociedade política e culturalmente bem organizada.
O
colonizador no romance de Achebe é representado por missionários europeus que
implantam novas práticas religiosas na aldeia onde vive Nwoye, o qual enfatiza
sua filiação à igreja, argumentando que queria aprender a ler e a escrever e
prometendo futuramente converter a mãe e os irmãos à nova crença.
Entretanto,
Nwoye e sua comunidade convertida não percebem que o processo religioso que se
iniciara em seu país tinha como objetivo desestabilizar o poder interno e
garantir o domínio das forças externas. Mais uma vez, tem-se retratada a
metáfora de Ariel, principalmente considerando-se a ingenuidade com que o africano,
nesse caso, aceita as práticas colonizadoras.
A
exemplo das narrativas acima, encontra-se na literatura caribenha o romance de
Maryse Condé (2002), Corações Migrantes, cujas personagens são também
acometidos pelo fenômeno de assimilação. Primeiramente, a conversão de Justin
logo após a morte do pai que aproxima sua irmã, Catherine Gagneur, da cultura
branca e consequentemente a faz abandonar seu namorado africano, Razyé. Para
Razyé, esse abandono provoca, a princípio, uma negação de suas origens, e ele
manifesta o desejo de ser branco. ― – Ah, como eu gostaria de ser branco!
Branco de olhos azuis! Branco com cabelos loiros! [...] Se eu fosse branco
seria respeitado por todo o mundo! [...]‖ (CONDÉ, 2002, p. 34).
Razyé,
apesar de manifestar admiração pelo branco, retoma sua consciência negra e
volta-se contra eles, incendiando suas propriedades e matando-os, numa
tentativa de dominar o espaço que seria do africano.
Cathy,
por sua vez, passa a reverenciar os novos costumes e imagina-se abandonando a
―toca cheia de ratos e morcegos que é L‘Engoulvent.‖ (CONDÉ, 2002, p. 45). E
aqui se consolida mais uma vez a proposta inicial deste ensaio, pois a
personagem mesmo deslumbrada com as novas perspectivas que se apresentam
procura em Razyé seu contato com as origens.
Já
na literatura europeia, desponta Luandino Vieira (1972) em Luuanda, livro de
contos que retrata a luta do povo angolano na reconstrução de sua cultura
esmagada pelo poder dominante. O texto de Luandino revela inicialmente a
assimilação do código linguístico do colonizador e o afastamento da língua
nacional, enfatizando a separação entre os negros pobres e os brancos ricos,
colocando os primeiros em situação de total miséria e impotência diante à opressão
colonial, conforme descrito no conto Vavó Xixi e seu neto Zeca, quando este
retorna para casa faminto e ela não tem nada para oferecer:
Com
um peso grande a agarrar-lhe o coração, uma tristeza que enchia todo o corpo e
esses barulhos da vida lá fora faziam mais grande, Zeca voltou dentro e dobrou
as calças muito bem, para aguentar os vincos. Depois, nada mais que ele podia
fazer já, encostou a cabeça no ombro baixo de vavó Xíxi Hengele e dasatou a
chorar um choro de grandes soluços parecia era monandengue, a chorar lágrimas
compridas e quentes que começaram a correr nos riscos teimosos as fomes já
tinham posto na cara dele, de criança ainda. (VIEIRA, 1972, p.38)
A
passagem anterior assemelha-se à situação descrita por Cornel West (1994) ao
discutir a questão do niilismo. Para ele, o niilismo significa ―[...] A vida
sem significado, sem esperança e sem amor gera uma perspectiva fria e
mesquinha, que destrói tanto o próprio indivíduo como os demais.‖ (WEST, 1994,
p. 31)
No
que diz respeito à narrativa fílmica, destaca-se neste ensaio o filme do
francês Daniel Vigne, Fatou l´espoir, por abordar a condição do africano
desterritorializado lutando contra os valores da cultura branca que se impõem.
Nesse sentido, convém mencionar o pensamento de Guacira Lopes Louro sobre o
advento do cinema. Para a autora,
Em várias sociedades, [...], o
cinema passou a ser, desde as primeiras décadas do século XX, uma das formas
culturais mais significativas. Surgindo como uma modalidade moderna de lazer,
rapidamente conquistou adeptos, provocando novas práticas e novos ritos
urbanos. Em pouco tempo, o cinema transformou-se numa instância formativa
poderosa, no qual representações de gênero, sexuais, étnicas e de classes eram
reiteradas, legitimadas ou marginalizadas. (LOURO, 2000, p. 423)
Dessa
forma, filme de Vigne, produzido em 2002 para a televisão apresenta a história
da jovem africana Fatou, interpretada por Fatou Ndiaye, que se opõe tanto às
tradições africanas quanto aos valores da sociedade moderna e branca.
Primeiramente ela é sequestrada e forçada pela família a se casar, porém
consegue se libertar e vai à França para reencontrar a família descobrindo que
essa se encontra destroçada: os pais separados e um irmão que vive cercado por
um harém que não pára de crescer levam Fatou a se empenhar na recuperação da
família.
Fatou
também enfrenta problemas profissionais, pois se vê obrigada a assinar um
contrato, o qual lhe impõe a exposição de sua imagem desnuda para uma campanha
de produtos de beleza. Ela, embora seja modelo, se recusa a tal prática por
acreditar que estará se vendendo como ―um produto negro de consumo e de
desejo‖. No entanto, ela acaba cedendo às imposições, uma vez que seu agente
tem provas contra seu pai e pode mandá-lo à prisão devido à ajuda ilegal que
esse presta aos refugiados africanos na França.
A
origem do problema de Fatou em comercializar sua imagem enquanto africana reside
mais no fato dela ter sido violentada e forçada a uma convivência que não
queria, e é descobrindo isto que a personagem vivida por Diouc Koma, o doutor
Iyassou irá levá-la a redescoberta de si mesma. Ele argumenta com Fatou que ―A
África que te deu tua sensibilidade, tua beleza, tua graça, teu talento, está
em você‖ e sugere que quando possível ela vá ver a África, como a única forma
possível de descobrir os africanos.
O
filme do cineasta francês não foge dos recursos dominantes das sociedades
colonialistas, retomando a ideia de que pode-se abandonar uma cultura e imitar
aquela dita civilizada, mas existe sempre a possibilidade do retorno.
A
análise dos textos acima não pretende ser definitiva, tendo em vista o processo
de construção de identidades por que passa tanto a literatura afro como o
cinema mundial. Entretanto as conclusões revelam uma necessidade de expor a
condição do africano e seus descendentes, e embora se aceite o fato de que o
assimilacionismo se caracteriza na narrativa de autores brancos e negros como
um mal necessário, não é sem sofrimento que ele se configura. Resta, pois, ao
sujeito da narrativa afro-descendente se submeter ao colonizador, sem deixar de
buscar sua liberdade e resgatar suas origens.
REFERÊNCIAS
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1983.
CONDÉ, M. Corações migrantes. São Paulo: Rocco,
2002.
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FERREIRA, R. F. Afro-descendente: identidade em
construção. São Paulo/Rio de Janeiro: Pallas, 2004.
GLISSANT, É. Introdução a uma poética da
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MUZART, Z. L. Maria Firmina dos Reis. In: MUZART, Z. L. (Org.) Escritoras
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REIS, M. F. dos R. Úrsula. Florianópolis: Mulheres,
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RODRIGUEZ, I. Arielismo o Canibalismo – Diálogo
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VIEIRA, J. L. Luuanda. Lisboa: Edições 70, 1972.
WEST, C. Questão de raça. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
Artigo publicado na Revista Scripta Alumni, v. 5
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
HISTÓRIA E FICÇÃO EM MEMORIAL DO CONVENTO DE JOSÉ SARAMAGO (1)
Todo romance
histórico tem como intuito principal uma reflexão sobre dados históricos e
personagens com a intenção de resgatar o passado e tornar o mundo ficcional
mais próximo da realidade. Ainda que saibamos que muitas personagens têm suas
características psicológicas alteradas, muitas vezes para agradar o leitor, o
escritor precisa estar inteirado no contexto histórico para poder usar seus
artifícios narrativos e ser convincente a ponto do leitor não saber onde acaba
a parte histórica e começa a ficção, criando, recriando, omitindo fatos para
que a personalidade das personagens seja convincente. O autor cria uma leitura
alternativa do passado, na verdade, não sabemos se dentre o que nos é
apresentado pelos livros de história podemos considerar tudo como verossímil.
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, professora de Literatura Portuguesa da UFRJ
faz uma afirmação muito relevante quando diz que “a linha que separa a história da ficção é tênue”. (SILVA,
1989. p. 274)
A literatura
construída com base na história dá ao leitor uma sensação de “déjà vu”. O que
se mostra como novo, na verdade parece estar sendo reinventado. Dessa forma o
autor pode melhorar ou responder as expectativas do leitor. Sendo assim a obra
literária tem a capacidade de recuperar sentidos omitidos da história factual.
A
contextualização histórica na narrativa literária possibilita um fenômeno estético,
construído através dos anseios e da visão de mundo sugeridos pelas personagens
e pela época escolhida pelo escritor.
É
muito comum encontrarmos textos que unam literatura e “realidade”, e através
desta forma de se criar é que a literatura se sustenta “como sistema” e funciona ao mesmo tempo como elemento de
constituição identitária e expressão de identidades, sejam elas regionais,
nacionais, étnicas, raciais, sexuais ou sociais.
A
questão da constituição da identidade é abordada com excelência por José
Saramago, mas sempre com o intuito de que o discurso paradigmático seja
repensado.
Em Memorial do convento, Saramago propõe-se a contar a construção desse em Mafra, tendo como uma das protagonistas, Blimunda, mulher que representa o povo em uma história atribuída ao rei D. João V. O autor não troca a identidade do rei, mas, através de um olhar irônico, cria Blimunda para se livrar das convenções sociais e dos registros históricos. Os acontecimentos do século XVIII são retratados pela personagem que consegue enxergar o que realmente há no mundo. Assim, o leitor pode conhecer os deslizes históricos e morais da igreja e os excessos da nobreza.
O meu dom não é heresia, nem
feitiçaria, os meus olhos são naturais, [...] eu só vejo o que está no mundo,
não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço passes
de mãos, só vejo [...] Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está
no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele e às vezes mesmo por
baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o
quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o não tivesse, Porquê,
Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-se (SARAMAGO, 1982, p. 75-76)
Essa construção tem seus pontos
positivos, pois traz para o texto a ruptura das identidades do passado e abre novas
possibilidades de experimentação de outras identidades, produzindo um novo
sujeito, recompondo estruturas em termos de pontos particulares de articulação.
Este processo
de identificação do sujeito não é automático, ele pode ganhar ou perder
características dependendo da forma em que o autor faz com que a personagem
adquira sua identidade gradualmente, parcialmente e com dificuldades e não algo
que já existe na consciência. É algo incompleto e que sempre estará em
formação. A constituição identitária não se forma a partir de um núcleo e sim a
partir da relação com os outros personagens que o sujeito convive. Quando o
leitor depara-se com uma personagem
histórica dentro de um romance, percebe que a identidade desse muitas vezes não
é racional e estável como se esperava através da história. Assim acontece com
Dona Maria Ana. Sempre narrada como a rainha, cumprindo seu papel como tal. Na
narrativa de Saramago, ela é uma mulher normal, com desejos carnais, cheia de
carências uma vez que seu casamento faz somente cumprir o protocolo. Essa
carência faz com que a rainha realize seus desejos através dos sonhos noturnos
que tem com o cunhado. Ela se torna fraca ao sentir tal desejo e por esse
motivo vive a rezar.
Porém,
Vossa Majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, É
verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem
ao confessor confesso, mas pelo visto, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos
adivinham [...] Farta estou de ser rainha
e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve
meu marido, não vá ser pior outro que venha. (SARAMAGO, 1982, p. 111-112).
É assim que Memorial do convento, do escritor português
José Saramago, conta a construção do convento de Mafra, fazendo
crítica às tradições históricas portuguesas e sua relação com os discursos
políticos e religiosos durante o reinado de D. João V, usando de forma muito
especial a narrativa de espaço, tempo,
ações e personagens que amarram os fatos históricos e a ficção.
As personagens unem seus papéis históricos à
ficção. Esses dois elementos, já intrínsecos, ganham nova forma e novo contexto
através dos olhos atentos do leitor. O tempo não é linear,
possibilitando ao destinatário ler com olhar reflexivo, buscando respostas em
outros contextos, as quais, muitas vezes, aplicam-se ainda nos dias de
hoje. O leitor, em qualquer época, consegue se reconhecer.
A literatura
nos proporciona caminhar dessa forma, unindo a história à ficção para que
possamos manter o passado, mas sem a obrigação de sermos totalmente fiéis ao
contexto histórico, entretanto, essa relação não está pronta e acabada, pois depende do olhar, da consciência e da recriação dos
leitores.
Cada texto traz uma proposta de significado que não está inteiramente edificada.
O significado se dá através da interação entre o texto e
o seu leitor que traz seu conhecimento baseado em outros contextos, de forma
consciente ou inconsciente “[...] todo texto se constrói como mosaico de
citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. (KRISTEVA,
1974, p. 64).
Referências
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São
Paulo: Perspectiva, 1974
SARAMAGO, José. Memorial
do Convento. São Paulo: Bertrand, 1982.
SILVA, Tereza Cristina Cerdeira da. José Saramago: Entre a História e a ficção,
Uma
saga de portugueses.
Rio de Janeiro: Ed. Lisboa: Dom Quixote LISBOA, 1989. vol. 1. p.
278.
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