Todo romance
histórico tem como intuito principal uma reflexão sobre dados históricos e
personagens com a intenção de resgatar o passado e tornar o mundo ficcional
mais próximo da realidade. Ainda que saibamos que muitas personagens têm suas
características psicológicas alteradas, muitas vezes para agradar o leitor, o
escritor precisa estar inteirado no contexto histórico para poder usar seus
artifícios narrativos e ser convincente a ponto do leitor não saber onde acaba
a parte histórica e começa a ficção, criando, recriando, omitindo fatos para
que a personalidade das personagens seja convincente. O autor cria uma leitura
alternativa do passado, na verdade, não sabemos se dentre o que nos é
apresentado pelos livros de história podemos considerar tudo como verossímil.
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, professora de Literatura Portuguesa da UFRJ
faz uma afirmação muito relevante quando diz que “a linha que separa a história da ficção é tênue”. (SILVA,
1989. p. 274)
A literatura
construída com base na história dá ao leitor uma sensação de “déjà vu”. O que
se mostra como novo, na verdade parece estar sendo reinventado. Dessa forma o
autor pode melhorar ou responder as expectativas do leitor. Sendo assim a obra
literária tem a capacidade de recuperar sentidos omitidos da história factual.
A
contextualização histórica na narrativa literária possibilita um fenômeno estético,
construído através dos anseios e da visão de mundo sugeridos pelas personagens
e pela época escolhida pelo escritor.
É
muito comum encontrarmos textos que unam literatura e “realidade”, e através
desta forma de se criar é que a literatura se sustenta “como sistema” e funciona ao mesmo tempo como elemento de
constituição identitária e expressão de identidades, sejam elas regionais,
nacionais, étnicas, raciais, sexuais ou sociais.
A
questão da constituição da identidade é abordada com excelência por José
Saramago, mas sempre com o intuito de que o discurso paradigmático seja
repensado.
Em Memorial do convento, Saramago propõe-se a contar a construção desse em Mafra, tendo como uma das protagonistas, Blimunda, mulher que representa o povo em uma história atribuída ao rei D. João V. O autor não troca a identidade do rei, mas, através de um olhar irônico, cria Blimunda para se livrar das convenções sociais e dos registros históricos. Os acontecimentos do século XVIII são retratados pela personagem que consegue enxergar o que realmente há no mundo. Assim, o leitor pode conhecer os deslizes históricos e morais da igreja e os excessos da nobreza.
O meu dom não é heresia, nem
feitiçaria, os meus olhos são naturais, [...] eu só vejo o que está no mundo,
não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço passes
de mãos, só vejo [...] Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está
no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele e às vezes mesmo por
baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o
quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o não tivesse, Porquê,
Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-se (SARAMAGO, 1982, p. 75-76)
Essa construção tem seus pontos
positivos, pois traz para o texto a ruptura das identidades do passado e abre novas
possibilidades de experimentação de outras identidades, produzindo um novo
sujeito, recompondo estruturas em termos de pontos particulares de articulação.
Este processo
de identificação do sujeito não é automático, ele pode ganhar ou perder
características dependendo da forma em que o autor faz com que a personagem
adquira sua identidade gradualmente, parcialmente e com dificuldades e não algo
que já existe na consciência. É algo incompleto e que sempre estará em
formação. A constituição identitária não se forma a partir de um núcleo e sim a
partir da relação com os outros personagens que o sujeito convive. Quando o
leitor depara-se com uma personagem
histórica dentro de um romance, percebe que a identidade desse muitas vezes não
é racional e estável como se esperava através da história. Assim acontece com
Dona Maria Ana. Sempre narrada como a rainha, cumprindo seu papel como tal. Na
narrativa de Saramago, ela é uma mulher normal, com desejos carnais, cheia de
carências uma vez que seu casamento faz somente cumprir o protocolo. Essa
carência faz com que a rainha realize seus desejos através dos sonhos noturnos
que tem com o cunhado. Ela se torna fraca ao sentir tal desejo e por esse
motivo vive a rezar.
Porém,
Vossa Majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, É
verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem
ao confessor confesso, mas pelo visto, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos
adivinham [...] Farta estou de ser rainha
e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve
meu marido, não vá ser pior outro que venha. (SARAMAGO, 1982, p. 111-112).
É assim que Memorial do convento, do escritor português
José Saramago, conta a construção do convento de Mafra, fazendo
crítica às tradições históricas portuguesas e sua relação com os discursos
políticos e religiosos durante o reinado de D. João V, usando de forma muito
especial a narrativa de espaço, tempo,
ações e personagens que amarram os fatos históricos e a ficção.
As personagens unem seus papéis históricos à
ficção. Esses dois elementos, já intrínsecos, ganham nova forma e novo contexto
através dos olhos atentos do leitor. O tempo não é linear,
possibilitando ao destinatário ler com olhar reflexivo, buscando respostas em
outros contextos, as quais, muitas vezes, aplicam-se ainda nos dias de
hoje. O leitor, em qualquer época, consegue se reconhecer.
A literatura
nos proporciona caminhar dessa forma, unindo a história à ficção para que
possamos manter o passado, mas sem a obrigação de sermos totalmente fiéis ao
contexto histórico, entretanto, essa relação não está pronta e acabada, pois depende do olhar, da consciência e da recriação dos
leitores.
Cada texto traz uma proposta de significado que não está inteiramente edificada.
O significado se dá através da interação entre o texto e
o seu leitor que traz seu conhecimento baseado em outros contextos, de forma
consciente ou inconsciente “[...] todo texto se constrói como mosaico de
citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. (KRISTEVA,
1974, p. 64).
Referências
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São
Paulo: Perspectiva, 1974
SARAMAGO, José. Memorial
do Convento. São Paulo: Bertrand, 1982.
SILVA, Tereza Cristina Cerdeira da. José Saramago: Entre a História e a ficção,
Uma
saga de portugueses.
Rio de Janeiro: Ed. Lisboa: Dom Quixote LISBOA, 1989. vol. 1. p.
278.