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sábado, 20 de julho de 2013

O discurso da memória e a identidade feminina na literatura afro-brasileira

Paraguassu de Fátima Rocha
 
 

 
Este artigo insere-se nos estudos da literatura de autoria de minorias étnicas e visa examinar o processo de construção da identidade do romance afro-brasileiro através da leitura dos textos de Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, destacando-se as diferentes vozes que emanam do romance e são enunciadas tanto pelas autoras quanto pelas personagens. Considera-se, também, no presente estudo, a questão da memória e sua relação com a identidade.
Para entender a construção de uma identidade literária afro-brasileira, é relevante lembrar que o negro cativo, trazido da África, não serviu ao Brasil apenas como mão de obra nas lavouras de café ou cana de açúcar, mas atuou também como elemento disseminador de valores culturais da sua terra de origem. Tratar, portanto, da Literatura Afro-Brasileira sem se voltar para os primeiros passos dados no processo de aculturação do negro, que ocorre já na sua vinda para o Brasil, é ver rompida uma linha que mostra a evolução dessa etnia numa nação que ajudou a edificar.
O País parece ter esquecido o que já defendia Joaquim Nabuco em suas campanhas abolicionistas, ou seja, que a raça negra foi responsável pela viabilização de um sonho do colonizador branco. Evidentemente, as marcas da escravidão e do racismo impostas ao negro e perpetuadas ao longo dos séculos por uma sociedade que não soube reconhecer suas contribuições continuam indeléveis, assim como as tentativas de reparação desse erro histórico têm gerado discussões muitas vezes contrárias à afirmação de um povo que quer apenas ser brasileiro e, como tal, legitimar os seus direitos à cidadania.
A presença do negro africano na história brasileira data de 1502 quando os primeiros navios tumbeiros carregados de escravos aportaram em nossas terras. Sua vinda, além dos aspectos econômicos favoráveis às nações europeias, justificava-se pela necessidade de uma mão de obra mais qualificada para desenvolver o trabalho nos engenhos e também para substituir o trabalho do índio que não se mostrava eficaz na execução de determinadas tarefas. Entretanto, o contingente de aproximadamente dois milhões de negros, arrancado de diversos pontos da África e espalhado pelo solo brasileiro, não contribuiu para o crescimento da nação apenas pela sua força bruta, uma vez que, trazendo consigo seus conhecimentos, tradições e costumes, ajudou a definir o perfil de uma sociedade que se quer branca, mas que reivindica para si a ancestralidade da África quando isso pode lhe beneficiar, chamando-se de negro, mulato ou pardo. Porém, independente das posições político-sociais que englobam também as questões raciais, o negro tem mostrado imensa determinação em preservar seus valores culturais, dentre os quais, a sua produção literária, seja recontando sua história, ou buscando, através de alternativas diversas, fazer valer sua identidade.
A discussão que se instaura em torno da construção da identidade do descendente africano encontra-se embasada no processo de transformação, de trocas e de identificações. Para tratar da questão da identidade, faz-se necessário retomar os pensamentos de Stuart Hall e Elisa Larkin do Nascimento. Hall (2001, p. 13) defende que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas em torno de um “eu” coerente, identidades contraditórias que proporcionam um deslocamento dos processos de identificação. Já para Nascimento (2003, p. 31), a identidade representa a articulação de referenciais que orientam a forma de agir e de mediar a relação do sujeito com os outros, com o mundo e consigo mesmo e está relacionada com a experiência de vida individual mesclada às representações da experiência coletiva de sua comunidade e sociedade, aprendidas na sua interação com os outros.
Ao relacionar os pensamentos de Hall e Nascimento, percebe-se que a identidade está diretamente ligada à memória na construção da escrita afro-brasileira, uma vez que “A narrativa duma vida faz parte de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada nas histórias dos grupos a partir dos quais os indivíduos adquirem sua identidade”, conforme salienta Jodelet (1994, p. 55) em seu artigo “Memorie che si evolvono”. Dessa forma, o escritor afro-brasileiro, ao recontar seu passado de abusos, firma-se, ainda que à margem, como senhor de uma história que só poderia ser contada de forma tão incidente por aqueles que a viveram. Nesse contexto, cabe lembrar a posição da escritora e poeta negra, Conceição Evaristo. Para ela,
Ao se observar a resistência da tradição cultural negra e a sua reelaboração, a sua reterritorialização no Brasil e em outros países, da diáspora africana, percebemos o caráter pessoal e coletivo da memória como possibilitador de construção de uma identidade. [...] A literatura afro-brasileira traz o registro de uma memória social, enquanto lembranças de vários indivíduos. Memória que permitiu um conhecimento de um sistema simbólico, que possibilitou uma reorganização do território negro da diáspora, através de uma mística negra, vivida em um tempo que escapa a uma mediação cronológica, por se tratar de um tempo mítico (Evaristo, 2008, p. 6).
Esse posicionamento vai ao encontro do que postula Maurice Halbawachs sobre a memória coletiva. Segundo o autor,
[...] se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que eu ali ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que do instrumento comum nem todos aproveitem do mesmo modo. Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social (halbwachs, 1990, p. 51).
Nesse processo de construção da identidade negra na literatura, é pertinente salientar que a escrita feminina, embora ocultada por muito tempo pelo véu da pobreza e da falta de instrução vinculados à exclusão racial e de gênero, conforme lembra Maria Consuelo Cunha Campos, merece destaque na história da Literatura Afro-Brasileira, especialmente nos textos autobiográficos que remetem às narrativas de escravos ou slave narratives norte-americanas. Tais narrativas se apresentam como descrições escritas ou orais de eventos ou situações particulares vividas pelos escravos e está centrada no rito de passagem do narrador escravo que escapa da escravidão e alcança a liberdade, como observa Henry Louis Gates sobre as conquistas dos escravos, “[...] essas conquistas refletem a superação do escravo das severas condições de sua escravidão” (Gates, 1987, p. ix – tradução da autora)[1]. Exemplos dessa conquista podem ser observados nos relatos biográficos de Rosa Maria Egipiciaca de Vera Cruz e Teresa Margarida da Silva Orta que datam do século XVIII.           
Como se percebe, a produção literária negra não é recente no Brasil, embora o seu reconhecimento tardio date dos anos 70, quando pesquisadores e a própria comunidade afro-brasileira decidiram fazer ecoar essa voz. Entretanto, a primeira manifestação literária negra no país surgiu através das modinhas, lundus e poemas de Domingos Caldas Barbosa, contidos nos dois volumes de Viola de Lereno (1798/1826). A ele, seguiram-se poetas e prosadores como Gonçalves Dias, Luiz Gama, Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis, Tobias Barreto, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Lino Guedes e Solano Trindade, os quais constituem os pilares de uma literatura que se encontra em construção, conforme afirma Eduardo de Assis Duarte (2006).
Em 1859, num período em que o Brasil vivia ainda sob a forte influência dos padrões europeus, e em que tanto os afrodescedentes quanto as mulheres estavam submetidos ao poder patriarcal, Maria Firmina dos Reis[2], considerada a primeira escritora afro-brasileira, publica o romance Úrsula, o qual desponta como uma tentativa fundamental no sentido de reestruturar o quadro de descaso para com os descendentes africanos no cenário da ficção e como ponto de referência no tocante à percepção da identidade enquanto sinônimo de interrelações. Seu recente resgate (1975) trouxe para a literatura afro-brasileira um alento no que diz respeito à tradição histórica deste tipo de escrita que despertava em meados do século XIX, e no qual a autora propõe uma leitura factual do comportamento do negro exilado.
Nesse romance, além das personagens brancas, tem-se destacada a presença dos negros Túlio e Mãe Susana. Essas vozes que ecoam no romance não deixam de ser a narrativa da história da autora enquanto afro-descendente porque, assim como ela, clamam pelo ideal de liberdade e igualdade. Ao relatar as experiências da escravidão, Firmina dos Reis revela a história e as raízes negras, a preservação da etnicidade e suas práticas culturais como forma de resistência ao colonialismo. A autora também demonstra preocupação com a construção de uma nova identidade do negro que se afirma diante do seu opressor. São as experiências vividas pela autora e as histórias compartilhadas entre os membros de um mesmo grupo que ativarão o plano da memória individual, estabelecendo, dessa forma, a dimensão social, conforme assevera Halbwachs:
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seu depoimento: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados e noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (Halbwachs, 1990, p. 34).
Mais recentemente, o discurso poético negro tomou corpo nas vozes de Aline França, Mirian Alves, Sonia Fátima Conceição, Geni Guimarães, Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, que se destacam não somente na poesia, mas fazem de seus romances um campo de contextualização e discussão da realidade do afrodescendente no Brasil.
O romance de Aline França, A mulher de Aleduma (1985), embora contrariando a tendência da literatura afro-brasileira de pormenorizar os horrores da escravidão, mostra, através de um estilo surrealista e metafórico, a batalha do negro para se fazer reconhecido enquanto sujeito de sua história. Dessa forma, os heróis criados pela autora, num romance que remete à epopeia, representam um ideal: o orgulho de ser negro.
A escrita da poeta e romancista Geni Guimarães é marcada pelo tom de protesto e afirmação da identidade negra. Seu romance autobiográfico, A cor da ternura (1988), voltado para o público infanto-juvenil, desenvolve uma personagem feminina negra, construindo também uma identidade afrocentrada. Desta feita, porém, não há heroicização como no texto de França. Ao contrário, a autora bem representa as questões que envolvem a discriminação, o preconceito e o racismo a que são submetidas as crianças negras no contexto social.
Também poeta e romancista, Conceição Evaristo[3], autora de Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006), reforça o quadro das escritoras negras que experimentam, por meio das vozes das protagonistas de seus romances, engrossar o coro dos que clamam pelo reconhecimento, num universo marcado pela pobreza e a discriminação.
Em Ponciá Vicêncio, Evaristo traça o perfil da mulher negra vivendo numa sociedade pós-abolicionista que deixa o afrodescendente em posição tão vulnerável à supremacia do branco quanto àquela vivida durante o regime escravocrata. A autora discute as consequências da diáspora negra que resultou no afastamento do negro das suas origens, pela busca da personagem por sua identidade e pelo reencontro com a família, o que se apresenta como uma expectativa de ver superada a situação amarga vivida por seus antepassados e redefinir o papel do negro na sociedade.
O romance de Evaristo, mesmo resgatando a memória de seus antepassados, situa-se nas histórias contemporâneas porque, conforme Assis Duarte (2006, p. 105), “busca trazer ao leitor os dramas vividos na modernidade brasileira, com suas ilhas de prosperidade cercadas de miséria e exclusão”. Ponciá Vicêncio traz à tona a realidade do cativeiro social da modernidade, em que o negro é exposto a toda forma de negação.
Seu segundo romance, Becos da Memória, retoma lembranças da infância, seus personagens representam pessoas que possivelmente fizeram parte da vida da autora. Essa, fazendo uso de sua voz, reivindica a identidade de quem deseja ser protagonista da própria história ao resgatar a história de seus antepassados. Evaristo, em seu artigo “Memória e Escrevivência – Parte I”, reafirma a origem de sua escrita como um conjunto de lembranças de sua infância, como se traduzisse a sua escrita ficcional:
[...] creio que a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e adjacências. Dos fatos contados a meia voz, dos relatos da noite, segredos, histórias que as crianças não podiam ouvir. [...]. Na origem da minha escrita, ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas contando em voz alta uma para as outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias (Evaristo, 2007, p. 19).
Entretanto, não apenas o negro-autor é capaz de trazer, através da memória, a voz dos excluídos. E aqui, é importante ressaltar as considerações de Eduardo de Assis Duarte sobre a autoria na construção da literatura afro-brasileira. A autoria é entendida por Duarte “não apenas como um dado exterior, mas na condição de traduzida em constante discursiva integrada à materialidade da construção literária” (DUARTE, 2006, p. 106), o que requer, dessa forma, um engajamento com a problemática do negro. Isso significa que apenas a consciência de ser afrodescendente não basta para se filiar ao contexto da Literatura Afro-Brasileira, é preciso antes adotar práticas discursivas que atendam aos propósitos e às necessidades deste grupo marginalizado. No entender do autor, trata-se de um tópico controverso, na medida em que há autores brancos fazendo literatura negra, como a jornalista Ana Maria Gonçalves[4], que em 2006, após encontrar alguns manuscritos, cuja autoria é atribuída à Luiza Mahin, decide usá-los como base para o seu romance Um defeito de cor.
Trata-se de um romance histórico, narrado, também, por uma voz feminina. Kahinde, a narradora-autora, decide, no final da vida, escrever sobre suas andanças desde que fora capturada na África e trazida ao Brasil. Os escritos de Kahinde representam a esperança de manter viva sua memória, o que se configura no texto de Ana Maria, na medida em que esta recompõe a história da protagonista e preserva a memória do seu povo marginalizado. A narrativa da personagem não é fruto de uma identidade individual, ao contrário, é construída coletivamente e perpassa universos distintos: a ancestralidade da África; os horrores da escravidão no Brasil; o retorno à África e, finalmente, o regresso ao Brasil em busca do filho perdido.
 Em seu trabalho de pesquisa, Ana Maria reúne as memórias da narradora e, ao preencher as lacunas da história que, segundo ela, correspondem às páginas perdidas do manuscrito, brinda o leitor com um romance híbrido, no qual real e ficção se complementam. O romance representa, portanto, uma escrita conjunta da construção da identidade do negro excluído, ou seja, a memória guardada encontra respaldo no desejo de preservá-la, que pode ser entendido como um comprometimento do autor negro ou branco, de denunciar a opressão.
Ana Maria, em entrevista a Renato Pompeu da revista “Retrato do Brasil” (2006, p. 45), embora declare que não considera que a literatura tenha a responsabilidade de influenciar na formação de uma consciência negra e que “escreveu um livro que gostaria de ler, com informações que gostaria de ter encontrado em um livro sobre o assunto”, reconstrói, através de suas pesquisas, o passado de horrores que viveu o negro no Brasil. As histórias contadas em Um defeito de cor correspondem aos acontecimentos que marcaram o período escravocrata e são narradas partindo da visão das personagens, sejam elas reais ou ficcionais. Dessa forma, a autora contribui para fortalecer a noção da existência de uma identidade negra que se manifestava já naquela época, mas que somente agora se tornou objeto de discussão.
Maria Nazareth Soares Fonseca, ao analisar o romance Becos da memória, ressalta a importância dessa tomada de posição. Para ela,
O sujeito que assume a ação de narrar o que expressam essas vozes excluídas sabe que o registro dos sofrimentos dos miseráveis expõe os cortes constantes do próprio corpo, feridas difíceis de serem cicatrizadas. Para salvar do esquecimento as histórias de vida mergulhadas na pobreza extrema e no abandono, o escritor, fazendo-se sujeito participante, assume narrar as histórias dos lugares degradados como uma forma de luta contra a miséria, deslocando “o prazer meramente contemplativo”, como diz Walter Benjamin, para uma atitude política que se concretiza na maneira como a escrita procura vasculhar as vidas dos que lutam por sobreviver em condições intensamente desfavoráveis (Fonseca apud Evaristo, 2006, p. 12).
Todas as autoras mencionadas neste artigo exercem com propriedade o papel de críticas do regime da escravidão, dando voz ao negro marginalizado. Entretanto, destaca-se Maria Firmina dos Reis pelo seu pioneirismo e as escritas recentes de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, por fazerem parte da modernidade, entendendo-se que os séculos, que separam as autoras, correspondem à necessidade de ver consolidada a identidade literária do afrodescendente.
Firmina dos Reis é o próprio exemplo dessa filiação, pois em função de fatores externos, tais como a cor da pele, o gênero e os valores impostos pela sociedade patriarcal de sua época, obriga-se a negar sua origem e lança seu romance sob a alcunha de “Uma Maranhense”. Entretanto, é a posição da autora como afrodescendente que faz vir à tona um romance inteiramente pautado na questão do negro.
Conceição Evaristo também afirma seu pertencimento à classe de autores afrodescendentes, não apenas pelos romances Ponciá Vicêncio e Becos da memória, mas pelas vozes que ressoam em seus contos e poesia e que destacam, não somente a imagem estereotipada do povo negro, o sofrimento de seus antepassados, mas também a dimensão política e histórica das vitimas da diáspora negra. Ao tratar da questão da autoria, Evaristo declara sobre o seu romance, em entrevista a Giselle Araújo que “Há uma relação muito grande entre o sujeito autoral com a ficção na literatura afro-brasileira. Mas Ponciá tem uma história própria, embora eu parta de vivência na comunidade negra para tirar os elementos da ficção” (Evaristo, p. 1, 2007), comprovando dessa forma que a literatura afro precisa, de certa maneira, de elementos reais para contar sua história.
Essa prática discursiva encontra respaldo no pensamento de Elaine Showalter citada por Lucia Osana Zolin (2005, p. 277-278). Em seus estudos sobre a literatura inglesa, Showalter percebe que a escrita feminina dos grupos minoritários recorre a determinados padrões, temas e problemas como uma forma própria de manifestação em relação à sociedade dominante, ou seja, ainda segundo a autora, constrói-se uma subcultura dentro da sociedade patriarcal. Showalter destaca, também, as três fases percorridas por essas subculturas literárias: a imitação ou internalização dos padrões dominantes; as fases de protesto e de autodescoberta.
O romance de Firmina dos Reis, o primeiro a elevar o negro à categoria de sujeito do romance, pertence a primeira fase, pois imita, de certa forma, os padrões europeus na sua função estética[5]. Eticamente, porém, enquadra-se na segunda fase devido ao surgimento de vozes que protestam contra os valores da época e vêm em defesa dos direitos e valores das minorias, questão essa que se repete no romance de Ana Maria Gonçalves, agora na voz de Kahinde.
Seguindo a classificação de Showalter, observa-se que, nos romances de Conceição Evaristo, ocorre também uma intercalação de fases. Em Ponciá Vicêncio, por exemplo, a busca da personagem pela afirmação da identidade se manifesta como forma de protesto ao regime patriarcalista, já que a personagem não aceita o fato de seu sobrenome ser o mesmo do senhor das terras que os negros escravos ocupavam. Ponciá “Não ouvia o seu nome responder dentro de si” e sentia-se ferida pela “reminiscência do poderio do senhor” (Evaristo, 2003, p. 19). Já Becos da memória traduz, através da voz de Maria-Nova, o sentimento de Evaristo. Ambas rejeitam a condição de vítimas da sociedade e assumem uma identidade outra, protagonistas de suas histórias pessoais e porta-vozes das histórias de seu povo.
            Partindo dos conceitos de Hall e Nascimento sobre a identidade e de Halbawachs sobre a memória coletiva foram analisados os romances de Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves. Nessa análise, constatou-se que a fixação da identidade negra constitui o alicerce ético dos textos, uma vez que o discurso proferido pelas personagens reflete o pensamento de autoras que, independente da cor da pele, estão ligadas à problemática negra e demonstram por meio de sua escrita que, como indivíduos únicos, compartilham de experiências múltiplas resgatadas e reunidas pela memória.
 
 
Referências
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DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura Afro-Brasileira: Um conceito em construção. In: Afolabi, Niyi et al. A mente afro-brasileira: crítica literária e cultural afro-brasileira contemporânea, Toronto: África World Press, 2007, p. 104.
EVARISTO, Conceição. Vestibular e Educação. Conceição Evaristo: Foco na Cultura Brasileira. D+, 01 maio 2007. Disponível em http://www.santaluzianet.com/
_____________. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. In: Revista releitura. Belo Horizonte: Fundação Cultura – Prefeitura, 2008.
_____________. Memória e escrevivência – Parte I. In: ALEXANDRE, Marcos Antonio (org). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006.
_______________. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Costurando uma colcha de memórias. In: EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006.
GATES, Henry Louis. (ed) The classic slave narratives. The life of Oludah Equiano. The history of Mary Prince. Narrative of the life of Frederick Douglas. Incidents in the life of a slave girl. New York: A Memoir Book, 1987.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.
HALBWACHS, M. 1990. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
JODELET, Denise. Memorie che si evolvono. In: AA.VV. Memoria e Integrazione. Lecce, 1994.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
NASCIMENTO, Elisa Larkin do. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero do Brasil. São Paulo: Summus, 2003.
POMPEU, Renato. Um defeito sem máculas. In: O retrato do Brasil, ano I, n. 1, set 2006. Disponível em: http://www.oretratodobrasil.com.br/pdfs/RB_01/Um%20defeito%20sem%20maculas.pdf Acesso 20 jul 2010.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Ed. Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.
ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (org). Teoria Literária: Abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005.
 
 


[1]  […] these achievements reflect the slaves’ overcoming of the “severe conditions of their bondage” (tradução da autora).
[2] Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luis, em 11 de outubro de 1815 e faleceu em Guimarães/MA, em 1917. Foi a primeira professora primária a obter o cargo por concurso. Como escritora, colaborou na imprensa local com ficções. Escreveu os contos A escrava (1887) e Gupeva (1861); poesias que se encontram reunidas no livro Cantos à beira mar (1871); crônicas e charadas; e, como musicista, compôs o Hino à libertação dos escravos e o Hino à mocidade.
[3] Maria Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte/MG em 1946. Foi professora primária e atualmente é professora universitária.  Além dos romances Ponciá Vicêncio e Becos da memória é autora de vários artigos, contos e poesias. Essas reunidas no livro Poemas da recordação e outros movimentos (2008).
[4] Ana Maria Gonçalves nasceu em Ibiá/MG em 1970. É formada em Publicidade e escritora.
[5] Em linhas gerais, o texto de Firmina dos Reis narra a história de amor entre os jovens brancos Tancredo e Úrsula e a interferência maléfica do Comendador Fernando P., tio da menina que se apaixona por ela e é rejeitado, culminando com o fim trágico dos dois apaixonados, delineando, assim, as características do romance ultra romântico, em que o amor só é atingido em sua plenitude após a morte. Entretanto, é o discurso anti-escravagista da autora, enunciado através de sua própria voz, bem como da voz das personagens negras, Mãe Susana e Túlio, que vai constituir o foco narrativo do romance.
 
Artigo publicado na Revista Entrelinhas, v. 5