Resumos. Ensaios. Artigos. Resenhas. Análises. Críticas.

domingo, 30 de janeiro de 2011

O CONTADOR DE HISTÓRIAS: AIRES OU MACHADO?

Paraguassu de Fátima Rocha

 
Em uma estação, espera-se pelo trem que chega às sete horas da manhã e sai em seguida. Iniciada a viagem, um cavalheiro, por volta de uns sessenta anos, senta-se e respeitosamente começa uma conversa. Quando se percebe, esse senhor está relatando fatos pertinentes à sua vida ou de outros próximos como quem conta histórias de reis, rainhas ou aventuras além mar. Esse é o primeiro impacto causado ao ler-se Memorial de Aires de Machado de Assis.
              E é através de uma narrativa lenta e desprovida de ação e suspense que o autor relata, por intermédio do Conselheiro Aires, no seu último romance, temas relacionados ao envelhecimento, tais como a solidão e a morte. Entretanto, essas características no romance em nada afetam a qualidade de sua obra, ao contrário, é nas páginas do diário de um  homem viúvo, aposentado e sem filhos que surgem personagens e episódios que vão preenchendo a sua solidão.      
              Machado não poderia ter escolhido um tema mais real para encerrar a sua carreira de escritor, tendo em vista que o romance é analisado por muitos críticos como uma autobiografia mascarada do autor, funcionando como um esquema psicológico, no qual são reproduzidas de forma fiel as mais intimas situações e sensações das entranhas de um senhor, cuja principal companhia é o tédio. Nesse sentido, não é difícil estabelecer coincidências com a vida do autor, como, por exemplo, a idade em que se encontrava, a criação da personagem D. Carmo, que muito lembra D. Carolina, e o relacionamento daquela  com o marido.
             Contudo, a verossimilhança do seu romance não se caracteriza por essas coincidências, mas pela relação causa-consequência verificada ao longo da história. É a partir de uma visita do conselheiro Aires e sua irmã Rita ao cemitério que ocorre uma sucessão de fatos, os quais acompanharão toda a narrativa. Nessa visita, Aires vê a viúva Fidélia e, encantado com a figura da jovem, começa a se interessar por sua vida. Ainda no mesmo dia tem notícias do casal de amigos que conhecera em sua última visita ao Rio de Janeiro, os Aguiares, que surpreendentemente são amigos de Rita e de Fidélia. A aproximação de ambos ocorre na comemoração das bodas de prata do casal Aguiar.
              É nesse clima de comemorações, visitas a casas de amigos, encontros casuais em suas andanças pela cidade ou conversas com antigos conhecidos que as personagens vêm participar do cotidiano do conselheiro e preencher as páginas do seu diário, lembrando que a existência de agendas e diários se faz necessária pelo fato do ser humano conviver com o real esquecimento. E, as mesmas anotações que existem para relembrar, como um flashback, existem também para deixar bem claro que tudo aquilo que passou requer renovação.
              A organização lógica dos fatos dentro do enredo, desencadeando novos fatos, é um dos recursos adotados por Machado para dar verossimilhança ao seu romance. Em uma de suas anotações, datada de 14 de julho de 1988, a personagem relata a possibilidade da reconciliação entre Fidélia e seu pai, do qual encontrava-se afastada desde que decidira casar com o filho de um inimigo político. Devido à doença do pai, Fidélia parte para a fazenda com o tio. O personagem escreve: “Não é fácil adivinhar o que vai sair daqui, mas não será fácil compor uma invenção que não acontecesse. [...]. Melhor é dizer que a reconciliação parece fazer-se mais depressa do que esperavam [...]”. Nesse sentido, pode-se afirmar que Machado de Assis não se limitava a copiar a vida, porém, através de sua imaginação, transformar a realidade.
              Outro fator que contribui para a verossimilhança no romance Memorial de Aires é a sequência temporal, estabelecida ali através do estilo adotado pelo autor, a forma de diário, a qual causa uma certa estranheza no inicio, porém provoca uma interação muito maior com o leitor, pois esse sente-se transportado para os anos de 1888/1889. É fácil para o leitor sentir-se como o amigo mais íntimo do conselheiro Aires, tendo-se a nítida impressão que Aires chama quem o lê para uma parte retirada qualquer, para segredar o que tem acontecido na vida daqueles que têm contato com ele.  Têm-se ainda, a introdução de fatos históricos, como, por exemplo, a abolição dos escravos.
             Além do discurso direto, Machado utiliza o discurso indireto em quase toda a narrativa, estabelecendo assim um monólogo psicológico, algumas vezes se justificando por não haver mencionado algum fato, outras se recriminando pelo excesso cometido em algum comentário. No entanto, em meio as suas manifestações interiores, procura colocar o leitor diante da fala real das personagens, introduzindo diálogos, que mesmo curtos traduzem o pensamento destes.
              Contra aqueles que podiam considerar seu romance inverossímel, Machado se defende ao escrever sobre a coincidência do motivo da partida de Osório, um dos pretendentes de Fidélia. Ambos tinham os pais adoentados. “Há na vida simetrias inesperadas. A moléstia do pai de Osório chamou o filho ao Recife, a do pai de Fidélia [...] à Paraíba do Sul. Se isto fosse novela algum crítico tacharia de inverossímel o acordo dos fatos, mas já dizia o poeta que a verdade pode ser às vezes inverossímel”.
              Abordar temas como a velhice e a morte poderia passar ao leitor um tom cinza de tristeza e melancolia, principalmente na época em que foi escrito, pois então era como se o sentido da vida acabasse quando se atingisse uma certa idade. Machado, no entanto, habilmente pincela seu romance com um colorido especial, representado pela ternura e tenacidade de D. Carmo, que mesmo não tendo filhos, encontra em Fidélia e Tristão a sua realização como mãe; a vivacidade de Tristão, envolvido com a beleza de sua terra natal e os interesses políticos em Portugal; a juventude de Fidelia, que, embora, viva a viuvez da alma, é capaz de sutilmente demonstrar um pouco de alegria, ou num simples encontro com um grupo de crianças, que levam o conselheiro sentir-se realmente alegre.
               Há ainda que se ressaltar a interligação entre Memorial de Aires (1904) e Esaú e Jacó (1908), devido à presença do Conselheiro Aires, um observador das sutilezas da psicologia humana. Aires, com seu manuscrito a ser publicado depois de sua morte, constrói um monumento elogioso à sua memória (algo como uma propaganda para “vender o próprio peixe”) tal como se esperaria de um memorial, sendo a ligação, o criador de personagens de ficção e relator do diário de dois anos de sua vida.
Memorial é um livro que prende a atenção do início ao fim, pelo caráter pessoal que apresenta, trazendo o leitor para dentro da história e fazendo-o participar dos acontecimentos descritos. A genialidade machadiana prevalece.

REFERÊNCIAS.
ASSIS, Machado. Memorial de Aires. São Paulo: Conduta, 19..



sábado, 22 de janeiro de 2011

A TRANSCRIAÇÃO DO ESPAÇO NO FILME LAVOURA ARCAICA


Paraguassu de Fátima Rocha


No filme de Luiz Fernando Carvalho, bem como no texto de Raduan Nassar, as configurações do espaço não se delineiam como pano de fundo, mas sim como pontos de significação e conteúdo, porque o espaço é interiorizado pela personagem em cuja mente misturam-se as emoções do presente e as reminiscências do passado. Ambos, Nassar e Carvalho, são mestres na criação de imagens que denotam a complexidade da mistura e fusão do devaneio com a lembrança (Bachelard, 1993, p. 44) que toma conta da mente de André quando rememora os acontecimentos ocorridos dentro da casa natal e cercanias.
Segundo Gaston Bachelard, “a casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio” (Bachelard, 1993, p. 26). A rememoração das rotinas da casa e dos espaços adjacentes torna-se um elemento chave para revelar a geografia interior do narrador-protagonista. Nesse processo de vasculhar o passado, André denuncia o fanatismo do pai, o chefe da casa que subjuga a todos em nome de tradições antigas e de crenças religiosas, traduzidas de acordo com a sua conveniência e que conduzem cada membro da família a um isolamento paradoxalmente centrado na união familiar. E essa relação paradoxal é revelada, tanto no romance de Nassar quanto no filme de Carvalho, com base nos princípios da ontologia do ser. Na medida em que André se apercebe que os valores apregoados pelo pai perdem o significado e seus ensinamentos tornam-se confusos, não se aplicando à realidade em que acredita, ele se rebela, conforme confidencia a seu irmão: “Pedro, meu irmão, eram inconsistentes os sermões do pai” (Nassar, 1989, p. 48).
No reencontro com o irmão, André revive seu passado, desnudando diversas regiões de sua intimidade e fazendo emergir lembranças que traduzem metaforicamente a relação do homem com seu espaço, seja ele interno, onde os sentimentos convivem harmônica ou desarmonicamente prontos a explodir à menor passagem de ar, ou ainda externo, o qual surge como coadjuvante desse processo, mas não menos responsável pelas reações advindas do ser que se vê em conflito com os elementos que o circundam, sejam eles de ordem material ou espiritual.
Ao tratar da questão do espaço e os elementos simbólicos que o compõem, os pensamentos de Antonin Artaud e Gaston Bachelard parecem soar em uníssono na compreensão da estilística adotada pelos autores do romance e do filme Lavoura Arcaica. Artaud em O teatro da crueldade (1993) e Bachelard em A poética do espaço (1993) comungam do mesmo pensamento ao vislumbrar a necessidade de confrontar o ser do homem com o ser do mundo, promovendo o que Bachelard convencionou chamar de dialética do exterior e do interior. Aí residem todas as manifestações que provêm do espaço íntimo do ser e que resultam da convivência com a dimensão externa à qual este é submetido. Segundo Artaud, a extensão e os objetos falam mobiliados de silêncio e mobilidade e as coisas da natureza exterior surgem como se fossem tentações (Artaud, 1993, p. 84).
A representação da intimidade está contida na relação de André com a natureza: ele se coloca como parte dela, ou ainda conforme declara Luiz Fernando Carvalho “André é quase um musgo, [...]. Eu sempre o imaginei como uma planta” (Carvalho, 2002, p. 33), e como tal vive à sombra de seus pensamentos. André mostra-se sempre um ser retraído e mesmo quando o momento é de descontração, afasta-se, recolhe-se em si mesmo, não participa efetivamente dos acontecimentos, mas são esses momentos que revelam seus pensamentos, seus desejos contidos, e conforme afirma Bachelard “fechado no ser, sempre é necessário sair dele” (Bachelard, 1993, p. 217). A festa no bosque é um exemplo da exteriorização dos sentimentos reprimidos de todas as personagens. André revela seu desejo inconfessável por Ana ao enterrar seus pés na terra, sugerindo a idéia da penetração e considerando-se os pés como símbolo sexual, conforme descrito por Chevalier e Gheerbrant (2007:694) em seu Dicionário de Símbolos, ela por sua vez, através de uma dança sensual, demonstra o seu fogo de vida, o impulso irracional para a vida, e desponta como tentação para André.
Dessa forma, os espaços selecionados por Luiz Fernando Carvalho surgem como moldura para a revelação dos estados da alma das personagens, e relacionam-se especificamente na representação de André, com as mudanças que ele sofre ao longo de sua existência. Na infância, a personagem transita por espaços abertos, onde predominam campos que se estendem além dos limites da visão, projetando a liberdade e a imaginação do menino. Na medida em que vai crescendo seus espaços vão se estreitando, refletindo seu isolamento e insatisfação com as atitudes do pai.
            Carvalho delineia ainda o processo de ambientação descrito por Osman Lins como “o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente” (Lins, 1976, p. 77), mesmo antes de iniciar as filmagens, buscando na reconstrução de um cenário ideal de fazenda desde a escolha do local, a recuperação da casa, a escolha do mobiliário até a convivência dos atores entre si, experimentando situações comuns àquele ambiente. Yurica Yamasaki, diretora de arte, afirma nos extras do filme, que a intenção era gerar “um fundo que criava um ‘clima’ [...] que dá uma densidade ao filme, que passa para o espectador um astral” (Lavoura Arcaica, 2002, Extras). Toda essa preparação contribui para que o público não se veja apenas diante de um plano cinematográfico delimitado pela câmara, mas sim, perante a totalidade da imagem simbólica ali representada.
O crítico de cinema Marcel Martin, ao analisar os símbolos, argumenta que esses se “acham investidos, além de sua significação direta, de um valor maior e mais profundo” (Martin, 2003, p. 101), classificando-os como símbolos plásticos, dramáticos e ideológicos. As lembranças, que André armazena em seu subconsciente e que revelam seu passado solitário, escondido, obrigando a personagem desde a infância a fixar-se em seu próprio mundo, serão revividas, a partir do momento em que a porta da pensão, em que se hospedara, é aberta para a entrada do irmão Pedro, revelando o que o crítico define como símbolo plástico, ou seja “[...] planos em que o movimento de um objeto ou um gesto – ou sua ressonância afetiva – pode evocar uma realidade de outra ordem” (Martin, 2003, p. 101-2).
A porta representa ainda “o próprio cosmo do Entreaberto” (Bachelard, 1993, p. 225), estabelecendo uma relação antagônica da visão de mundo de ambas as personagens, explicada por Jung como o medo do sótão e o medo do porão. Para Jung “a consciência comporta-se [...] como um homem que, ouvindo um ruído suspeito no porão, precipita-se para o sótão para constatar que não há ladrões e que, por conseguinte, o ruído era pura imaginação. Na verdade esse homem prudente não ousou aventurar-se no porão” (Jung citado por Bachelard, 1993, p. 36). Pedro mostra-se prudente, porém cego diante da realidade que André conseguiu enxergar na sua casa natal, principalmente quando exposto à claridade que segundo ele o perturbava.
Ainda na aplicação do conteúdo latente ou implícito da imagem descrita por Martin, Carvalho insere no contexto fílmico símbolos dramáticos que segundo o crítico são aqueles “que desempenham um papel direto na ação, fornecendo ao espectador elementos úteis para a compreensão do enredo (Martin, 2003, p. 102). Para representar a passagem de Ana da adolescência para a vida adulta, o diretor introduz a personagem num pequeno cômodo em que essa busca por um espelho com a intenção de verificar seus órgãos genitais e descobrir o porquê do sangramento. Neste mesmo instante a imagem é cortada e vê-se algum objeto sendo estilhaçado na cozinha. A quebra do objeto aliada ao sangramento de Ana sugere o rompimento de um ciclo e o início de outro, intensificando a narração que se faz através da justaposição das imagens, multiplicando as possibilidades de leituras.
Através da sobreposição de imagens o diretor também materializa o conteúdo mental de André. No momento em que se retira da casa do pai para viver na casa abandonada manifesta pela primeira vez, de forma explícita, seu desejo por Ana. A caminho da casa pára no bosque, seu local de alento, e envolto por ramagens que parecem brotar de seu próprio corpo nu, vocifera que poderá ser o profeta de sua própria história, da qual a irmã faz parte. É projetada então a imagem dela nua entrando na água, adiantando dessa forma um encontro que já estava marcado para acontecer, pois em seguida a imagem de seu avô surge na tela e a palavra “Maktub” é proferida. Para produzir efeito dramático o diretor faz uma tomada em plongée, minimizando o cenário do encontro, possibilitando a André exercer o domínio sobre o mundo que imaginara.
Outro símbolo dramático é a flor vermelha que Ana traz nos cabelos no momento em que dança para seduzir André. Segundo suas palavras, a flor se parece com um “coágulo” de sangue; esse coágulo vai representar a tragédia vivida pela família na cena final, na qual o pai ao descobrir o ato transgressor, num ímpeto de fúria, decide matar a filha.
Todos esses elementos reunidos se integram à configuração do espaço, considerando-se a influência que esse exerce sobre a personagem André e suas relações com o ambiente que o envolve, ou seja, a equação entre homem, sociedade, natureza e objetos (Artaud, 1993, p. 86). A cartografia da alma, que Carvalho desenha em Lavoura Arcaica, pode ser relacionada às considerações teóricas de Bachelard que, através da topoanálise, faz um estudo sistemático das imagens construídas desde a infância de nossa vida íntima no espaço habitado. Ele argumenta que todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, são indeléveis no ser humano (Bachelard, 1993, p. 28-29).
André carrega consigo todas as marcas de sua família e principalmente de sua casa, a qual é o ponto de referência na sua vida, e o é em termos gerais, pois abriga o devaneio, protege o sonhador e permite sonhar em paz. E são nos cantos da casa que se criam os locais de intimidade. Já na infância, ele vivia em seu quarto momentos de intimidade com a mãe, recheados de segredos. Era acordado por ela de maneira bastante carinhosa e revelava-se entre eles um amor diferente, além do amor entre mãe e filho. Ela constantemente se declarava para André dizendo: “meus olhos, meu coração e meu cordeiro”, palavras que eram repetidas por ele com a mesma intensidade.
Na medida em que atinge um grau maior de entendimento, o mesmo espaço que na infância abrigava seus sonhos se transforma em ponto de conflito. E sendo ele ainda o que o diretor convencionou chamar de o “dono do diário olho” (Carvalho, 2002, p. 37), uma vez que através do seu olhar são reveladas as intimidades e os segredos das outras personagens, como, por exemplo, os segredos dos membros da família que são postos a nu através da busca minuciosa que faz nos armários e mesmo nos cestos de roupa suja, esse processo, novamente, nos remete a Artaud que fala sobre as mensagens ocultas nos objetos.
            As imagens retratadas no filme mostram ambientes simples, mas austeros, especialmente a sala de jantar onde eram realizados os sermões do pai em que predominava a ausência de luz. Mesmo a casa abandonada, na qual André se refugia após ter enfrentado seu pai, denota a personalidade da personagem. O local é sujo, encontra-se destruído e compõe o cenário para sua solidão vivida, o que para Bachelard representa uma rejeição à vida, embora seja ali um dos locais escolhidos pela personagem para experimentar a conquista da sua “liberdade”. O quarto de pensão, exíguo e decaído, que ele vai habitar após sua fuga, também remete a essa concepção, sendo lá também que ele tem um encontro com suas verdades.
Entretanto, no jogo da memória da personagem, existem espaços que contrastam com aqueles cenários. O bosque era o lugar em que André se sentia à vontade, um espaço iluminado e profano onde os sentimentos são exteriorizados, principalmente durante as festas para comemorar o sucesso alcançado com os trabalhos no campo. Lavoura Arcaica registra dois momentos dessas festividades. No primeiro, além da dança que Ana realiza para André com o intuito de seduzi-lo, fica evidente que a personagem não tem uma relação próxima com sua família, exceto com a irmã, a qual admira desde a infância. O seu afastamento durante a celebração perpetua a idéia da solidão e do individualismo da personagem, que o levam a encerrar-se em si mesmo, mas criam, segundo Carvalho, uma relação de espaço, em função dos elementos presentes na cena que remetem à infância de André e com os quais ele estabelece íntima relação. É a mesma árvore, o mesmo chão em que afunda os pés quando quer exprimir os seus desejos.
Analisando os aspectos culturais, a família apresentada nos textos de Nassar e Carvalho pode inicialmente ser inserida no que Lévi-Strauss (1970) classificou como sociedades “frias” ou primitivas, ou seja, aquelas que se orientam pelo modo mítico de pensar em que o mito é definido como a “máquina de supressão do tempo”. Tais sociedades não incorporam valores externos e vivem dentro dos padrões que acreditam válidos para a manutenção de seus costumes. Na última conversa com André, essa cosmovisão é reafirmada por seu pai, cujo discurso austero, de cunho moralizante, está sempre impregnado de ecos bíblicos filtrados pelo seu próprio e estreito entendimento, configurando a “lavoura arcaica” implícita no título da obra. O patriarca reitera que nada poderá destruir o que levara milênios para ser construído e ninguém naquela casa haveria de dar curso novo ao que não pode ser desviado. André é o membro da família que vai contrapor-se a esses princípios ao revoltar-se contra o pai, partindo para enfrentar uma sociedade civilizada, ou “quente”, termo esse também cunhado por Lévi-Strauss, e que tem como principal meta o desenvolvimento. Entretanto, não é fora de casa que suas dúvidas e angústias são dissipadas. Ele retorna ainda mais revoltado e confuso, mas mesmo assim é bem recebido pela família que lhe prepara uma festa de boas vindas.
A festa marca a tragédia derradeira da família, e é Pedro quem vai deflagrar o quadro de violência ao relatar ao pai o envolvimento amoroso entre Ana e André. Enquanto os convidados se unem num círculo de dança, ele caminha pensativo e demonstra estar bastante perturbado com a revelação de André sobre o incesto. Revoltado com a postura incontida da dança de Ana, Pedro se aproxima da irmã e num misto de indignação e desejo se afasta correndo. Então, a câmera percorre lentamente as cercanias da árvore e focaliza os pés de André em contato com a terra. Esse flash remete ao recurso recorrente utilizado pelo diretor para expressar a excitação de André.
Em seguida, Pedro decide relatar ao pai o segredo que o irmão lhe contara. Na seqüência, o pai enfurecido, arremete-se sobre Ana, ceifando-lhe a vida. Aqui o diretor recorre a uma elipse para narrar a morte da jovem, substituindo a violência da cena por uma flor que perde suas pétalas ao rolar pelo chão ao sabor do vento, criando também uma metáfora dramática. O ímpeto de vida a que se refere o narrador corresponde por analogia ao desabrochar de uma flor, à própria Ana que ao soltar suas amarras torna-se dona do seu destino, imprimindo um tom fatalista às narrativas de Nassar e Carvalho.
A cena acima descrita evidencia também o distanciamento de André, até mesmo pela opção do diretor em excluir a imagem dele da festa. Nesta cena, segundo Carvalho, são usados somente os pontos de vista da personagem e seu corpo é representado apenas pelos planos de seus pés, tornando sua presença apenas sensória, não temporal, ficando impossibilitado de impedir o golpe fatal (Carvalho,  2002, p. 69).
            Se na abertura do filme André é mostrado como um animal em alerta, a cena final revela um animal abatido pelos acontecimentos, dominado pelo espaço e pelo tempo. Deitado, desolado, a câmera focaliza-lhe apenas o rosto, revelando um olhar perplexo que se perde na imensidão das alturas enquanto ele, mecânica e lentamente cobre seu corpo com folhas secas, retornando ao seu universo interior marcado pela escuridão.

REFERÊNCIAS
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993
CARVALHO, Luiz Fernando. Sobre o filme Lavoura Arcaica. Granja Viana – Cotia SP: Ateliê Editorial, 2002.
CHEVALIER, Jean & Gheerbrant, Alan. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva [et al]. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1989.
Lavoura arcaica. Brasil, 2002. 170 minutos. Dirigido por Luiz Fernando Carvalho.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2003.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Artigo publicado nos anais do XVIII CELLIP, 2007, Ponta Grossa/PR.

"ATÉ O FIM" DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA

           Paraguassu de Fátima Rocha

           Observando-se o poema de Chico Buarque, percebe-se uma história elaborada com rimas e efeitos sonoros próxima da linguagem coloquial de pessoas que residem do interior do país (termos como safado, chato de um querubim, tava, maracatu e festim).
           O autor mistura presente e passado, demonstrando claramente a intenção de contrariar o destino traçado pelo anjo. Isso pode ser verificado pela presença da antítese nos dois últimos versos da primeira estrofe: "Já de saída a minha estrada entortou,/Mas vou até o fim". Ou seja, o eu poético seguirá em frente independente dos acontecimentos que a vida lhe reserva, principalmente num país como o Brasil, em que para obter sucesso é preciso ser jogador de futebol ou ladrão (talvez uma alusão aos políticos). Embora vivendo da incerteza e sacrificado pelas perdas, o sujeito do poema não desiste, conforme afirma no último verso de cada uma das estrofes.


            Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim

Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim

Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim

Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pr'onde mesmo que vou
Mas vou até o fim

Como já disse, era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Do LP Chico Buarque - Polygram, 1978

Referências

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

ANÁLISE DOS POEMAS "AUTOPSICOGRAFIA" e "ISTO" DE FERNANDO PESSOA

Paraguassu de Fátima Rocha

Fernando Pessoa, nos poemas "Autopsicografia" e "Isto", transporta as emoções para o papel de maneira racional e inteligente, ou seja, suas emoções são fruto de sua mente criativa, tendo em vista a criação de seus heterônimos. Explica-se: se sua inteligência e necessidade de tratar de tantos temas universais, como é o caso da dor e da poesia, extrapolam o seu próprio eu, levando-o a elaborar como foram os heterônimos (Ricardo Reis, o poeta do estoicismo e defensor do paganismo; Álvaro de Campos, um poeta rebelde e angustiado; e, Alberto Caieiro, simples e bucólico) e assim retratar uma mesma realidade de forma distinta, não seria incomum que o mesmo ocorresse em seus poemas.

Em "Autopsicografia", cujo título, por si só, sugere a tendência racional da poesia de Pessoa, pois o poeta descreve o funcionamento de sua mente no momento da criação, a dor é retratada como um processo de fingimento (a dor transforma-se através da imaginação do poeta, ou seja, a criação poética (a dor) é uma criação ficcional (o poema). "O poeta é um fingidor./Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente."

Esse mesmo processo de transformação é retomado no poema "Isto", no qual Fernando Pessoa materializa novamente o fingimento, deixando clara a ideia de criação, não o tratando como mentira, mas como aproximação da verdade, pois é inerente ao ser humano "Dizem que finjo ou minto/Tudo o que escrevo. Não., ou seja, sua escrita é, mais uma vez, resultado de algo pensado, elaborado, portanto racional: "[...] Eu simplesmente sinto/Com a imaginação./Não uso o coração."

Na segunda estrofe de "Autopsicografia", o poeta leva o leitor a identificar-se com a dor escrita, aquela que está presente no poema e não com a dor fingida ou sentida, tendo-se aqui uma relação do que é real e do que é ficção: "E os que leem o que escreve,/Na dor lida sentem bem". O poeta finaliza esse poema, esclarecendo que para lê-lo se faz necessário despistar a razão: "E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão".

Já o poema "Isto", além de retratar o poeta como fingidor, fazendo uso da metalinguagem, trata o poema como se fosse algo superior, capaz de recriar o que já fora dito em outros poemas: "Tudo o que sonho ou passo,/[...]/É como um terraço/Sobre outra coisa ainda". Percebe-se também o conflito interior do poeta, sua insatisfação com a escrita.

Fernando Pessoa parece querer mais do que sua imaginação lhe permite criar, relatando o paradoxo humano da ambiguidade que ao mesmo tempo que é precisa, pode tornar-se êfemera e sem nenhum valor. "Vontades ou pensamentos?/Não o sei e sei-o bem".

sábado, 15 de janeiro de 2011

ANÁLISE DE POEMAS

Paraguassu de Fátima Rocha

Os sinos (Manuel Bandeira)

Alguns aspectos a serem considerados na análise de um poema:

1) Composição gráfica
- espaço e organização do poema na página.
2) Ritmo
- tamanho dos versos, sonoridade, compasso.
3) Léxico e Sintaxe
- organização das palavras que compõem o poema.
- categoria gramatical
- pontuação
- substantivos: sugerem pouco movimento ou elasticidade.
4) Semântica
- significação do texto

O poema de Manuel Bandeira é composto de 15 estrofes, contendo grupos de um, dois e três versos. Os versos contêm cinco sílabas poéticas, cuja acentuação recai na última silaba, ou ainda com dez silabas, tendo acentos na 5ª. e na última silabas, o que lhe confere sonoridade.
O ritmo é conferido pela repetição da palavra “sino”, pelas aliterações “[...] Belém, bate bem-bem-bem”, “Paixão [...] por meu pai?” e da onomatopeia, como em (“Belém [...] bem-bem-bem” e “Paixão [...] bão-bão-bão, sendo que a presença desses recursos sonoros faz lembrar o balançar dos sinos.
Sinos lembram anunciação ou chamamento, normalmente de momentos de alegria, o que não impedem de anunciar a morte. No poema, é possível deparar-se com as duas situações:  “Sino de Belém, pelos que ainda vêm!”, nesse caso, pode estar anunciando uma nova vida, motivo de felicidade ou ainda chamando pessoas para um momento de agradecimento; já o sino da paixão pode estar relacionado ao sofrimento.
Embora o poema tenha um ritmo alegre, o autor transmite um momento de dúvida, ou mesmo de angústia quando questiona: “Sino do Bonfim, baterás por mim?”

REFERÊNCIA

BANDEIRA, Manuel. “Os Sinos”. In: BANDEIRA, Manuel. Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. Disponível em < http://books.google.com.br/books>




O RIO SEVERINO (HEBERT VIANNA/PARALAMAS DO SUCESSO)

        Nesta composição dos Paralamas do Sucesso (1994), o ritmo é marcado pela repetição do som das palavras “vem, tem, quem, bens”. Percebe-se uma sinuosidade na posição dos versos, o que lembra o caminho percorrido por muitos rios.
            A presença do verbo “vir” no início do poema dá ideia de movimento, porém o verbo é enfatizado apenas nas duas primeiras estrofes, o que pode estar relacionado à nascente do rio, ou mesmo a algum trecho onde a água seja abundante.
            A partir da 3ª. estrofe, a diminuição da água torna o momento quase impossível em função do descaso com que os rios são tratados no país. Ocorre aí uma comparação entre o rio e o povo, ambos tratados igualmente. Entretanto, o povo, por ser ignorante, não é capaz de cuidar de si mesmo, muito menos dos rios que lhe acolhem às suas margens. Há também uma relação entre a ignorância e a crença, ou seja, é mais fácil pedir aos deuses do que tentar mudar sua própria situação.




terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O PRINCÍPIO DA VIDA NA MÃO DOS ESCRITORES

Paraguassu de Fátima Rocha

   Na literatura encontram-se alguns exemplos de figuras estáticas que adquirem vida na mão de escritores com o objetivo de transformar a realidade por vezes triste e conturbada ou para analisar o caráter humano. Valores morais são resgatados através dessas figuras, como no caso de Pinóquio, o boneco de madeira que adquire vida para diminuir a solidão do velho marceneiro, passando a partir de então a interagir com personagens humanos, assumindo, dessa forma, características de personalidade inerentes a eles.
            Mais recentemente, tem-se na literatura nacional a Santa Bárbara, de Jorge Amado, em Sumiço da Santa (1988). Nesse romance, o autor dá vida àquela imagem fazendo-a participar no cotidiano dos outros personagens, interferindo nas suas ações e reações. A fé e o misticismo misturam-se, também, na obra de Jorge Amado.
            No texto de Machado de Assis, representado pelo conto “Entre Santos” é possível observar essa característica, uma vez que o autor, não sem propósito, ao dar voz aos santos, convida o leitor a uma reflexão sobre a conduta humana.
            Primeiramente, há que se considerar que santos, antes de serem representados por imagens estáticas, já foram humanos e, portanto, detentores de personalidade e alma. Machado de Assis ao fazê-los descer de seus altares parece querer revelar os segredos daqueles que se prostram diante das imagens, bem como analisar seus comportamentos.
            Ora, desnudar o ser humano não é uma característica machadiana? Ao analisar-se sua obra, conclui-se que sim. Nesse sentido, é que os santos machadianos assumem uma postura devassadora da alma humana, pois revelam a falsa devoção, o falso moralismo, a indecisão e as mesquinharias do homem.
            A fé que se dissolve é representada pela adúltera, que, enquanto pedia para se afastar do relacionamento, pensava em seus momentos ardorosos, levando-a a afastar-se do templo.
            A história do avaro que, embora tenha ido buscar ajuda divina por amor à esposa, retrata o ceticismo de Machado quanto à natureza do homem, o que  está claramente representado pela fala de João Batista “...: começo a descrer dos homens”.
A fé é posta à prova nessa historia, pois o homem que a princípio se diz disposto a recompensar a Deus com uma perna de cera caso seu pedido fosse atendido, mostra-se indeciso e inseguro na sua oferta em função do  seu caráter materialista que o  leva a substituir a perna de cera por orações, ficando deslumbrado diante dos números elevados que lhe vêm a mente, impedindo-o de efetuar a promessa.
Machado de Assis, mais uma vez, através da conversa de seus personagens, desvenda segredos que muitas vezes não contamos nem a nós mesmos.


sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Holocausto e os limites da representação literária

Paraguassu de Fátima Rocha


O tema do Holocausto será analisado segundo as considerações teóricas de Hayden White em Probing the limits of representation: Nazism and “Final solution” (1992), no qual o autor apresenta as visões críticas de Saul Friedlander ao estabelecer a diferença entre as narrativas competitivas e os modelos inaceitáveis de enredo; Art Spielgman, que enquadra o evento do Holocausto às convenções de uma revista em quadrinho através de uma sátira trágica; Hilgrubber que divide esse evento em duas histórias (tragédia e enigma incompreensível) e que considera o Holocausto como um evento não representável na linguagem; George Stainer, para quem o Holocausto está além do discurso e da razão; Alice e A.R. Eckhardt que não encontram argumentos para relatar o evento, pois para eles não há como dizer o indizível; Berel Lang que impõe limites para qualquer  representação literária do Holocausto, além da distinção entre história e ficção; e, também, Auerbach que apresenta a visão modernista da representação desse trágico momento da humanidade..
O texto de Hayden, além de ser crítico, apresenta uma tese revisionista do Holocausto, questionando os números e a radicalidade dos fatos, argumentando que os textos escritos representam tanto a verdade quanto a farsa. O autor estabelece 4 categorias para a representação desse evento baseado na teoria dos tropos, destacando-se a metáfora (romance), a metonímia (tragédia), a sinédoque (comédia) e a ironia (sátira). Para ele, a representação da história deveria se estabelecer através da distinção entre o fato e a ficção, sendo que o primeiro está ligado ao referente real (histórico) e à ficção se enquadra o referente imaginado, entendendo-se que o mesmo evento pode ser narrado de maneiras diversas, gerando diferentes significados.
Ao discutir as questões relacionadas ao Holocausto é pertinente estabelecer a distinção entre os seguintes gêneros: o romance, no qual se estabelece uma relação entre o herói e a natureza, sendo que este se sobrepõe a ela; a comédia em que se reconhece as limitações do ser humano frente às forças da natureza, proporcionando uma reconciliação entre ambos; a sátira, na qual o herói tenta vencer as forças da natureza, sem que haja uma reconciliação ou compensação; e, a tragédia em que a natureza sobrepuja o herói, gerando o ganho de consciência.
Hayden acredita que algumas formas de montagem de enredo podem ser consideradas irresponsáveis para representar o Holocausto, tendo em vista que esse não pode ser tratado como uma tragédia porque não há como se criar um herói de caráter elevado. Já para a interpretação cômica, o nazismo não tem nada de positivo.
No campo literário, os romances Se isto é um homem (2001) de Primo Levi e A noite (2006) de Elie Wiesel, ambos escritos em primeira pessoa, relatam os horrores do Holocausto e tratam do tema da morte de forma explícita.
Primo Levi foi o primeiro escritor a narrar o cotidiano dos campos de concentração nazistas. Seu romance apresenta questionamentos e reflexões sobre a condição humana, tais como a dignidade para manter-se vivo, a distinção entre o bem e o mal, o preconceito, entre outros. Além de ser um relato carregado de subjetividade tem sua narrativa intensificada pela invenção dos fatos. Para Lang, trata-se de uma crônica literal dos fatos.
O romance de Elie Wiesel retrata as relações familiares em que o narrador, embora deseje ardentemente a morte, precisa sobreviver para garantir a vida de seu pai, levando-o a viver cada momento intensamente. Trata-se de um relato auto-biográfico que revela o fim da crença em Deus, elementos da tradição judaica, as estratégias que o narrador faz uso para sobreviver e a loucura que é a própria realidade das vítimas da tragédia do Holocausto.
Para concluir o tema abordado, distingue-se história e ficção. A primeira caracteriza-se pelo relato objetivo dos fatos em que o historiador tem como fonte os documentos. A história apresenta exemplos de virtudes, retrata os fatos, mas não a vivencia e não ritualiza o fato histórico. A narrativa ficcional apresenta elementos que não correspondem aos fatos e caracteriza-se por alinhavá-los ou ainda estabelecer uma tessitura da intriga. Conta também com referentes imaginados e tem como objetivo produzir a catarse, aproximando-se da ritualização.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A MORTE DO AUTOR: A RELEITURA DE HAROLDO MARANHÃO DA OBRA MACHADIANA

          
Paraguassu de Fátima Rocha


          O autor até recentemente era um ser individual responsável pela escrita de um livro, tornando-se, por esse motivo, o senhor absoluto de sua obra. Esse conceito sofreu alterações ao longo do tempo e foi reestruturado a partir das teorias de Mikhail Bakhtin e Roland Barthes.
Para Bakhtin, todo artista, inclusive o autor, tem  a tarefa de encontrar um meio de aproximar-se da vida pelo lado de fora, ou seja, a sua criação não deve partir apenas do seu eu interior, mas buscar através do seu contexto histórico e social uma nova visão de mundo.  Ideia similar é defendida por Barthes em seu ensaio “A morte do autor”, no qual ele demonstra que o autor não é simplesmente uma “pessoa”, mas um sujeito constituído social e historicamente, não existindo antes ou fora da linguagem. É a escrita, portanto, que faz o autor e não o contrário. Barthes não considera o autor apenas uma pessoa com direitos legais e semânticos específicos, cuja existência se deve ao texto, não podendo assim reclamar nenhuma autoridade absoluta sobre este.
Bakhtin e Barthes comungam da mesma ideia quando determinam os objetivos do autor, que para eles são a criação de uma nova combinação literária a partir de elementos pré existentes e a participação do leitor, cujo intuito para Bakhtin é “sentir”o ato criador, e para Barthes, é a capacidade renovadora do texto.
Outro aspecto ressaltado por Roland Barthes é o aparecimento do leitor como peça fundamental na recriação, acrescentando, alterando ou editando um texto, abrindo desta forma a possibilidade de uma autoria coletiva. O leitor mesmo que não mude fisicamente as palavras de um texto, o renova, simplesmente reorganizando-o e dando diferentes ênfases que podem influenciar seu significado. O que Barthes determina em seu ensaio é a releitura do texto e para que isto ocorra é necessário o afastamento do autor.
O romance de Haroldo Maranhão, Memorial do Fim (1991), elucida as questões levantadas por Bakthin e Barthes, na medida em que contempla a obra machadiana a partir de fatos históricos misturados à ficção, sem introduzir-se nela, conforme se observa no capítulo XV. O autor recorda um “evento” ocorrido em 1876 e mesmo estabelecendo um diálogo com o leitor, portanto em primeira pessoa, ausenta-se do fato ao iniciar a narrativa. Nesse sentido, estabeleceu-se o limite do mundo por ele criado.
A obra de Machado de Assis é recriada no romance de Maranhão exatamente através de sua releitura. O autor de Memorial do Fim que se declara um “leitor/ autor” utiliza-se de recursos como a colagem e a paráfrase, a paródia e a estilização, além da intertextualidade e o dialogismo para apresentar um novo sentido aos textos de Machado.
Referências:
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 2a. ed.
MARANHÃO, H. Memorial do Fim. São Paulo: Planeta, 2004, 2a. ed.
“Death of the author” . Disponível em: http://jefferson.village.virginia.edu/
“Exit Author”. Disponível em: http://www.triplov.com/hipert/exit.htm

Pensando em Literatura 1 - frases rápidas

A literatura é...

... a arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso.
... o conjunto de trabalhos literários de um país ou época.
... o uso estético da linguagem (som, ritmo, símbolos).
... a obra de arte realizada por meio de palavras.
... a expressão de determinada realidade, portanto, manifestação folclórica ou artística que se utiliza da linguagem para falar do processo de produção da vida.
... a expressão de uma sociedade e de uma realidade.
- parte da história da humanidade.
- a representação do mundo real.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

ENCONTRO DE CULTURAS

Paraguassu de Fátima Rocha

            A discussão em torno da cultura é desenvolvida através das abordagens filosófica e antropológica. A primeira define cultura como toda forma de manifestação humana e a segunda a entende como aquela que compreende hábitos, costumes, crenças e tradições, entre outras, que representam a identidade de um povo. Destacam-se as culturas de elite, feitas pela elite e para a elite; popular, a qual surge nas camadas populares e reflete especialmente a arte de um povo, diferenciando-o dos demais; e, a cultura de massa que enfoca toda e qualquer manifestação popular. Destacam-se também os conceitos do Evolucionismo Social, o Funcionalismo e o Estruturalismo.
O Evolucionismo destaca-se pela visão evolutiva da sociedade e tem início num estado primitivo no que se refere às religiões, prevalecendo, a principio, o animismo que tem na natureza o seu objeto de adoração. Segundo essa teoria, desenvolvida por Henry Morgan, Herbert Spencer e Edward Tylor, as crenças passam pelo domínio do politeísmo, monoteísmo e ateísmo. Quanto à evolução social, sua origem se dá através da anarquia sexual, passando para o matriarcado poligâmico, o patriarcado poligâmico e a monogamia.
A corrente do Funcionalismo é explicada segundo as teorias de Bronislaw Malinowski. Para ele, todo comportamento social tem uma função e traduz a prática cultural que se explica através de sua essência e não através da aparência. Malinowski também faz uso do recorte sincrônico que implica no estudo de situações atuais para fundamentar suas teorias. O antropólogo, entretanto, não consegue dar conta das transformações por que passam as sociedades.
Já o Estruturalismo, defendido por Claude Levi Strauss, deriva da concepção linguística de Saussure e estabelece sistemas de regras, além de defender determinadas práticas sociais como o incesto. A cultura para Strauss é um processo dialético em que se combinam a tese, a antítese e a síntese, essa ultima caracterizando a reafirmação da identidade.
Os estudos atuais compreendem as considerações de Clifford Geertz, o qual vale-se da hermenêutica para fazer a interpretação antropológica e reintroduz o contexto histórico. Geertz também defende a interpretação das culturas e analisa as diferenças de comportamentos interpretando os fatos apresentados através de uma descrição densa que consiste na busca dos significados neles embutido. O autor, no entanto, não consegue explicar a prática social por ela mesma e busca uma leitura possível, não acreditando que possa atingir a essência, além de defender que a literatura representa-se para si mesma e que as condições particulares das personagens é que são universais, projetando um estado de identificação. Nesse contexto de interpretação, a teoria literária faz uso dos princípios de Geertz para proceder a análise de seus textos.
Incluem-se ainda os estudos de Max Weber e Ludwig Wittgenstein. Para Weber a cultura se apresenta como um sistema de signos e a possibilidade de imaginar a realidade sem a presença de um determinado fator. Wittgenstein defende a cultura como processo de dominação, considerando que o texto escrito serve como referência para a compreensão do contexto atual e argumenta que não pode haver generalização porque um fato ocorrido em uma pequena comunidade não implica que alcance caráter universal.
O filme de Fábio Barreto, A paixão de Jacobina (2002), foi escolhido para ilustrar a “descrição densa” de Geertz, destacando-se a confusão de códigos culturais. O filme mistura personagens históricos com personagens fictícios sugerindo a leitura etnográfica, também proposta por Geertz. Segundo o teórico,  a prática da etnografia se dá pelas relações que se estabelecem entre os textos e a transcrição dos mesmos, entre outros. O filme projeta a ideia da redução de uma forma tradicional a uma farsa social em que a religião é usada como forma de acobertar a devassidão.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Memória e Ficção

Paraguassu de Fátima Rocha

Para tratar da memória é relevante observar as seguintes características:
- a memória firma-se como patrimônio cultural;
- ocorre em forma de lembrança;
- a memória individual  forma-se a partir da memória coletiva;
- as lembranças surgem de acontecimentos significativos;
- os registros são objetivos;
- a memória é passiva, enquanto as reminiscências são ativas e caracterizam-se  como uma faculdade exclusivamente humana;
- a memória está relacionada à identidade;
- a identidade social é definida pela capacidade que temos de lembrar do passado.
O estudo da memória segue as considerações de Platão e Aristóteles que estabelecem a oposição entre a ordem das coisas e das ideias, sendo que uma coisa refere-se às outras. Para Platão, as coisas são materiais, particulares e contingentes, enquanto que para Aristóteles, as ideias são imateriais, universais e necessárias. Aristóteles critica Platão porque acredita que ele inventa outro mundo para explicar o mundo em que vivemos.
Platão sugere que as ideias são causa das coisas e são mais perfeitas do que essas, além de serem concretas, sendo inerentes ao ser humano que é formado pelo corpo, o qual corresponde ao mundo material, e a alma que se relaciona ao mundo das ideias. Para ele, o ser humano aprende a partir do que se encontra em seu interior. O autor apresenta ainda a teoria do conhecimento intermediário que estabelece a relação entre alma-corpo-coisa e acrescenta que as imagens são armazenadas na memória. A imagem para os gregos significava fantasma, ou seja, uma imagem sensível das coisas, sendo que a produção das imagens se dá através de metáforas (a alma é maleável). Platão analisa também os conceitos de sensação e percepção, a primeira  é o resultado de um estímulo e a segunda caracteriza-se pela impressão particular de um objeto. O autor considera ainda que o conceito é a idéia abstrata, ou seja, a ideia é a mesma, mas a imagem é diferente. Ao discutir a literatura, Platão a considera inferior à coisa, já que as coisas são imperfeitas porque imitam outras, distinguindo três princípios: a ideia que corresponde ao modelo e que existe em si mesma; a coisa que está ligada à copia (mimese) e a literatura que representa a cópia da cópia.
Já para Aristóteles, o ser humano é constituído de corpo e alma e as coisas não se produzem através de um mundo pré-existente. Para ele, a imagem surge como fantasia, ou seja, a capacidade que a alma possui de formar imagens sensíveis e particulares na presença do objeto, enquanto que a memória desperta a capacidade da alma em formar imagens sensíveis na ausência do objeto. Aristóteles estabelece também o conceito de essência,  que segundo ele é material, universal e necessária, fazendo com que um objeto, por exemplo, seja o que é. A ideia para Platão é o conhecimento da essência da coisa que está para além da aparência, sendo que somente o intelecto ativo é capaz de captar a essência através da abstração, permitindo criar conceitos, enquanto o intelecto passivo permite armazenar conceitos (ideias). A literatura, para ele, caracteriza-se como a representação da ação humana (mimese), e o exagero é a condição necessária para que se produza a tragédia. Nesse sentido, a criatividade constitui o elemento essencial para que se produza um efeito mais intenso do que o real.